terça-feira, 24 de novembro de 2009

Kether

Consta, ainda na pré-história das Crônicas de Gaia, a história que denominei de Kether - a primeira Sephirot, a Coroa, de quem emana todo o resto na arvore Sefirótica da Cabala. O argumento era simples: eu, autor e personagem, encontrei um Aleph em Astorga. Simples assim. Um Aleph menor, um Aleph já conhecido, um pequeno ponto que contenha todos os pontos. Parti, obviamente, do pressuposto do original, partindo da premissa que o resultado é sempre apequenado pelo fato de ser baseado no original. Não uma cópia, mas uma homenagem, como os 89 poemas que homenagearam Gonçalves Dias e seu exílio. E cá está o Aleph em minhas mãos, situado em uma rua conhecida, não inventada, que não sem medo não olvidei, um Aleph visto por mim e por pessoas de verdade, de se pegar, amigas de infância.

Não mostrei o resultado pra ninguém e, provavelmente, nunca o mostrarei. Vendo-o hoje, acho ainda menor do que quando foi feito. Creio que o resultado não foi o esperado também pelo fato de eu ter ignorado por completo o postulado de H.G Wells, em que o fantástico do enredo deve estar inserido entre coisas comuns e sem importância. Pelo contrário, descrevi Astorga como uma representativa megalópole que acabou por obliterar meu Aleph. Sobre o postulado, terei oportunidade de melhor esclarecê-lo em outra ocasião.


A re-utilização de um argumento literário pode ter várias razões. Sátira, escancaradamente, homenagem, plágio; além de todas essas razões, muitas vezes o argumento aparece implícito, ou mesmo sem o propósito de reutilizá-lo. O próprio Aleph foi retirado de um conto de Wells, no que se refere ao próprio ponto que contenha o Todo. Também foi influenciado por Dante, justificado pelas coincidências das Beatrizes, da descida ao inferno – porão e da existência de guias.

O influxo exercido pelos antecedentes muitas vezes não é visível, muitas vezes não é direto. Muitos casos – demonstrados pelos críticos – ocorrem em que A, escritor no presente, tem clarividentes reminiscências de C, autor de outra nação, outro século e outra razão. No entanto, A declara nunca ter lido C. Descobre-se, por fim, a importância de B, pupilo verdadeiro de C, e de quem A tem grande dívida. Essa flecha tortuosa é, segundo Umberto Eco, explicada pelo Zeitgeist, o “espírito do tempo” que uns erroneamente o querem como um conceito metafísico.(1)

O fato é que, antes mesmo de sermos nós, somos um contingente de erros e acertos, de palavras riscadas, jogadas ao lixo e queimadas e de outras, eternizadas no bronze e nas academias. Somos muitos ancestrais, mesmo que não queiramos, mesmo que recusemos. Somos o sangue e tinta de milhões, sangue dos que geraram nosso corpo e tinta dos que geraram nossas mentes. O ancestral comum, o macaco ou Adão, no sangue, Dante ou Shakespeare, na tinta, como bem acharem melhor. Sem eles, não há vida. E não há literatura.


Todas essas linhas são menos justificativas apenas para meu pequeno e engavetado Aleph e mais um esboço sobre o conceito de influência e sobre a tradição da dívida literária.




Pierre Menard teve o propósito de escrever o Quixote. Não uma homenagem, não uma cópia. Sim o Quixote, o verdadeiro e primeiro Quixote. Em Tlön, estabeleceu-se a inexistência do plágio e que qualquer obra pode ser creditada para qualquer autor; o conceito de autor é pobre e sem importância.

No começo das Crônicas, influenciado por algumas leituras, tive uma idéia. Homenagear autores de formação, obras que me foram e que ainda me são importantes, preciosas. Mas apenas reutilizar argumentos utilizados para escrever livros não me pareceu convincente, como não me pareceu convincente o meu pequeno Aleph. Assim foi que as crônicas foram engavetadas.

O tempo alterou minha idéia inicial e pensei em outro propósito: um escritor tem determinadas razões para escrever um livro. E, normalmente, com o correr dos anos, essas razões são esquecidas por nós, leitores, e o que sobra para a posteridade é apenas a obra em si. O escritor tem suas razões e os leitores têm a obra finalizada. Com essa premissa, pensei o oposto. Homenagear livros e autores importantes não macaqueando suas obras; mas sim, inventando premissas, alterando as razões, criando motivos para que tais livros tenham sido escritos. Não escrever o Quixote, mas inventar a história que deu razões para que o Quixote fosse feito.

Obviamente não é um trabalho fácil. Para se escrever porque foi feito o Quixote, há a obrigação de se escrever como um Cervantes, há a obrigação de ser um Cervantes, com seus tiques, com seus maneirismos, com suas preferências, com sua própria musicalidade, suas palavras e suas idéias. Um trabalho digno de Pierre Menard, se fosse pra ser levado a sério. Obviamente, não é serio, não é pretensioso, não é nada. É apenas uma homenagem, a homenagem de toda a tinta que carrego comigo, de tantos que, de uma forma ou outra, carrego, estudo e reverencio. Nada, a não ser a despretensão, a não ser pela simples brincadeira de poder escrever como meus mestres, a pequena homenagem de todos os que tanto me ensinaram, de todos os que influenciam minhas linhas, de todos os que, humildemente, sou no momento em que escrevo isso. E, como Pascal, “e não me venham dizer que não disse nada de novo: La disposicion des matières est nouvelle”



(1). Explicação do Zeitgeist e da influência literária. Retirado do capítulo “Borges e a minha angústia da influência” do Livro Sobre a Literatura de Umberto Eco.

“A precede B cronologicamente, como foi o caso das discussões destes dias, por isso a discussão diz respeito comente à influência de A sobre B.
Todavia, não se pode falar do conceito de influência em literatura, em filosofia e até mesmo na pesquisa cientifica, se não se põe, no topo do triangulo, um X. podemos chamar esse X de cultura, de cadeia de influências precedentes? Para sermos coerentes com nossos discursos destes dias, chamá-lo-emos de universo da enciclopédia, Este X deve ser considerado, e nunca como no caso de Borges é preciso considerá-lo, visto que, como Joyce, embora de outro modo, usou a cultura universal como instrumento de jogo.
A relação A/B pode colocar-se de várias maneiras: (1) B encontra alguma coisa na obra de A e não sabe que por trás existe X; (2) B encontra alguma coisa na obra de A e através de A remonta a X; (3) B refere-se a X e somente depois percebe que X está na obra de A.”

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