terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Nezah

Há coisa mais clichê que botar a culpa nos livros para os nossos próprios erros? Seu Juiz, matei, mas a culpa é do Apanhador no Campo de Centeio. Ah, amorzinho. Se a Madame Bovary pode, porque eu não? Tô te falando, cara. A onda é largar o emprego, praticar magia, conhecer Machu Pichu e o Caminho de Santiago, que nem o Paulo Coelho...
Pois não é que dia desses, quando eu saia de casa, fui abordado por três sujeitos. O primeiro, um homenzinho carrancudo, cabelos grandes e encaracolados, nariz grande, adunco, disse:
- Por sua culpa, nossa Sociedade Secreta entrou em declínio.
Loucos sempre existem. Aconteceu com o John Lennon. Aconteceu com o Papa. Era a minha vez?
Os outros dois apenas observavam, um gordo com terno amarrotado e um careca, com óculos escuros, estilo aviador, os três com chapeuzinhos pequenos, engraçados.
- Ahn?
- A maldita história do Fugu. O peixe assassino. Você expôs o lema de nossa ordem. Deve arcar com as conseqüências disso.
Respondi que não conhecia a sociedade deles. Imediatamente, fui instruído pelo gordo – eram os Hasidim, Nequaquam, Hermeneutas ou outro nome engraçado, que agora não me recordo. Foi logo repreendido pelo homenzinho, que olhou severamente para o gordo e proferiu:
- Pregamos, dentre outra coisas, a salvação da alma pela mortificação do corpo. E maltratamos nossos cinco sentidos, com a esperança da salvação eterna.
-Que mais pregam? Perguntei curioso.
- A monarquia celestial Farroupilha e a santificação pela ingestão de alcachofras... mas isso não vem ao caso. O que importa é que deve você pagar as conseqüências.
-Até posso arcar com as conseqüências, mas me expliquem a causa, para que eu possa entender...
- Ora, não está claro? Você escreveu sobre uma sociedade que morre sempre na mesa, após comer. O fugu também é nosso símbolo, o veneno, a morte gradual, resultado da utilização de um dos nossos cinco sentidos... com paródias, você utilizou nossa Sociedade.
Não ousei discutir com o homenzinho e dizer que a História do Fugu era justamente oposta: a de pessoas que comiam com a probabilidade de que o peixe – se não bem cortado – estivesse envenenado. E que tal probabilidade transformava a degustação em uma experiência única... e deliciosa. A satisfação plena de um dos sentidos.
-Tudo bem. Qual é a conseqüência que devo pagar?
-Será seqüestrado por nós. Deverá percorrer o mesmo caminho que percorremos, para que se arrependa e para que também salve essa alma pecaminosa.
Argumentei que estava em dia com o dízimo e com os carnes de sócio Torcedor do Inter. Disse que tinha remédios pra tomar, que era comunista e que era alérgico a alcachofras. Como podem imaginar, não deu certo. Após as negativas do homenzinho, o gordo me sorriu, piscou um olho e disse, para meu total desespero, que eram mais ortodoxos que reclame de xarope. Loucos, pensei. Finalmente, chegou a minha hora...


***

- Deve passar pelas provas que também passamos. A total mortificação dos sentidos. Um a um. Deve maltratá-los, de forma que sinta a paz interior, a paz que só se consegue ao desprezar o corpo.
-E como começamos?
O primeiro dos sentidos que deve desprezar é o olfato. Deves buscar na sua mente aquilo que o teu nariz mais repudia. É, obviamente, uma escolha personalíssima. Eu passei um dia em um quarto com carne podre. Eles – apontando ao careca e ao gordo – escolheram um lixão aqui da cidade e óleo de rícino.
-Sim, sim. Pois eu tive um trauma na minha infância. Fui obrigado a comer um prato, por muitos anos e não suporto o seu cheiro.
- Ora, pois. Mostre o prato que compartilharemos da tua aflição.
Levei-os a um restaurante sofisticado e conhecido de Porto Alegre. Com o cardápio em mãos, titubeei um pouco com o Fusili fresco com cherne. Mas, triunfante, pedi o famigerado Taglioloni ao cioccolatto.
-Alias – disse ao garçom – se possível, queremos observar o maitre fazer o prato.
E piscando condescendente para os três, justifiquei que assim a tortura seria maior.
Palavras são apenas palavras para justificar a sinestesia do Tagliolini. Os elementos todos à nossa frente, primários, combinados, amalgamados, mais seus cheiros, suas cores, suas texturas. A massa primária, a farinha, misturada com o chocolate suíço derretido em banho Maria, as formas delicadas da feitura do Tagliolini, a manteiga Aviação na cenoura e no salsão.
Quando misturados com a carne de javali em cubos e o buquê aromático, senti o gordo soltar um gemido baixo. O maitre, indiferente a minha recém adesão à seita, juntou o vinho Cabernet, deixando-o evaporar, cozinhou por um bom tempo, adicionou cuidadosamente o caldo de carne e o sal e a pimenta. Separadamente, cozinhou na mesma manteiga cogumelos, juntando-os com a carne de javali. Por fim, cozinhou bem a massa, o tagliolini escuro e cheiroso, e a despejou no molho fervente, acrescentando avelãs e queijo parmesão. Aquilo que um dia eu imaginara escrever em alguma coluna como o Yin e o Yang, a combinação sublime entre o salgado e o doce, o carboidrato e a proteína, o branco-dourado do parmesão e o escuro-amarronzado do chocolate inserido na massa, o leve, porém agressivo tom da pimenta de mãos dadas com a aristocrática avelã, o aroma rústico e pesado do javali em contraste com o suave Cabernet. Olhei para o lado e imaginei que meu amigo gordo tinha pensamentos mais libidinosos que o meu. Bingo! Ninguém é gordo por comer alcachofras...
Todos nós perplexos, diante de nós o ensoph, o absoluto dos cabalistas, o pequeno milagre, O homenzinho pequeno e enfezado incapaz de decifrá-lo e o gordo, muito capaz de devorá-lo. Diplomático, senti que devia intervir, antes de criar uma dissidência, uma divisão na seita que acabara de entrar...
- É possível eu matar dois coelhos com uma tacada só. Não suporto o cheiro e o paladar disso. Posso comer tudo e, assim, ganhamos mais tempo.
-Eu... eu também acho que não suporto o paladar desse prato. Posso comer com ele? Perguntou o gordo ao homenzinho, como um filho que pede um sorvete antes de jantar para a mãe.
- Cale-se. A prova é dele e não sua, respondeu o homenzinho, como uma mãe que nega o sorvete.



***


- Deves agora maltratar a visão. O que mais aflige seus olhos? Respondi-lhes sinceramente que o que me afligia há muito tempo era a visão do Último tango em Paris. E, com eles, vi Paul e Jeanne, se entregando um ao outro, de todas as formas, de todos os jeitos, sem conhecimento de suas procedências e seus nomes, face a face imitando de maneira gutural o som dos primatas ou a Jeanne dizendo que não necessitava dele e se masturbando na cama...
Estavam perplexos, excitados, quase acabados. A genial interpretação de Marlon Brando sem querer foi a responsável por uma crise em uma seita de loucos. Porém, faltava o golpe final, a tacada de mestre, a rolada do Pelé para Carlos Alberto.
- Agora mostrarei minha maior aflição, aquilo que todas as noites me angustia. E é justamente a prova que falta para que eu seja aceito: o tato.
Não conseguiria meu objetivo sem o Google. Santo Google. Junto com o ar condicionado e as calças de ginástica, as três maiores invenções do século passado. Bendito Google. Nosso oráculo, nossa enciclopédia. Google, que Borges – sempre ele – conhecia e que, por erro, denominou-o como Aleph (não é, meu caro Millor?). Google, o ponto que contém todos os pontos do universo, o milagre de acharmos que se pode ter tudo ao alcance de nossas mãos, ou de um clique.
- Meu último pavor não é de ser tocado. Na verdade, nunca a conheci. Mas conheço algo que vai dar a imaginação do que eu sinto.
E digitei as palavras mágicas, as palavras que me levariam para a salvação, o três dáblios, o ponto que tudo contém, a opção por procurar por imagens.
Procurei por um nome, um nome que, provavelmente, eles já conheciam, como eu.
- Para entender o que eu sinto, é necessário um exercício imaginativo, porque meu terror é apenas mental; é impossível que um dia se concretize. É importante que vocês olhem as imagens do Google imaginando um texto que lerei pra vocês, que escrevi um dia desses. Assim conseguirão sentir o tamanho do meu tormento.
E assim li o que se segue:
“ Dia desses, coisa de repórter que não tem pergunta pra fazer, perguntaram-me o que eu achava do Paraíso. Respondi que a única visão do Paraíso que eu tenho é a de que o paraíso é uma grande nuvem branca, com rios límpidos e puros, com pássaros piando sons ternos, com videiras, amoreiras, pessegueiros e, principalmente, com Yelena Isinbayeva. Digo mais, se me é permitido um pedido, uma graça concedida por Deus, uma só, não quero imortalidade, fama, sucesso, nada de nada. Só quero, quando morrer, ser acordado no paraíso pela Yelena Isinbayeva. Nada mais, tesouros, imortalidade, fama, o escambau. Trocaria tudo pra ter a Isinbayeva me acordando com sua voz suave e me tocando, como quem toca a vara que lhe dará o centésimo vigésimo terceiro recorde mundial no salto com vara. Salvo engano, estamos nós dois nus, porque estamos no paraíso, e creio que o contrato vitalício com as roupas da Nike da Isinbayeva não valem no paraíso. E depois de me acordar, ela, em seu colo macio, me preparará um combinado de Stolichnaya original, pedaços de gelo celestial e uvas do paraíso, colhidas por ela mesma, enquanto treinava seus saltos. E enquanto eu sorvia lentamente a bebida, sob a relva verde e macia, olhando pra seus olhos, que me mostravam ao fundo, enquanto eu tomava o insuspeito néctar dos deuses, Isinbayeva lia, em russo mesmo, a parte que Raskolnicov mata a pauladas a velha do Crime e Castigo. E, de minha fronte, lágrimas escorriam, misturando-se ao leito de um rio límpido e tranqüilo. E quanto mais ela lia, mais de minha fronte insistia em derramar lágrimas para o límpido rio. Porque só eu sei o quanto é lindo, deitado nas coxas firmes da Isinbayeva, escutar ela ler Crime e Castigo em russo, língua estranhíssima. E é lindo, simples e unicamente, porque é a Isinbayeva, por que se ela estivesse cantarolando qualquer jingle dos carros Lada, eu choraria da mesma forma. E quando eu me cansava de escutar aquela melodia celestial, ela me virava de costas e fazia massagens em toda a minhas costas, enquanto todos os outros anjos se invejavam da beleza completa daquela insuspeita deusa...”
Creio ter parado por aí, enquanto os três olhavam sem piscar todas as imagens da Isinbayeva. Estavam embriagados, seduzidos, pelo canto da sereia que emanava de uma tela LCD de 17 polegadas, embebidos pelo par de olhos azuis estonteante da russa. Perfeito, pensei. Nem vou precisar apelar... .
O homenzinho jogou o chapéu no chão, deu um gemido por sua derrota e disse talvez as palavras mais sentidas que já disse em sua vida: Pô, Luis Fernando. Parei contigo.
Virou-se então nos calcanhares pequeninos e saiu, pra nunca mais ser visto.
Os outros dois ameaçaram ir, fizeram menção de também jogarem seus chapéus, de também fingirem nervosismo, mas os olhos azuis na tela do Google foram mais fortes.
- Há mais dessas? Perguntou o gordo.
- Você não viu nada, respondi sinceramente. Espere até eu mostrar a Luana Piovani.
Eles fizeram um ohh de perplexidade e então que arrematei, dono da situação, experiente, ares de Grão Mestre.
- Mas, com a Luana é diferente. Meu sentimento pela Luana é avuncular.
Salvo engano, criaram uma igreja com sede no Rio de Janeiro, em que se auto-intitulam “Avunculares” ou “Avunculianos”. Nunca descobri se há algum nexo de causalidade.

Pós-escrito - Nezah


Ilegal. Imoral. E Engorda... Se pudesse resumir a leitura de Luis Fernando Veríssimo, resumiria assim. Luis Fernando é, embora minha frase soe ambígua, delicioso. Seja em uma crítica artística, seja em um livro sobre a arte da degustação, seja confessando seu amor e suas taras, seja retratando com extrema ironia o homem brasileiro, ler Luis Fernando é simplesmente delicioso. O Analista de Bagé, Mentiras que os Homens contam e Comédias da Vida Privada são excepcionais livros que retratam o cotidiano nosso. O Banquete dos Deuses e, principalmente, o fantástico Clube dos Anjos me deixam com fome. O último trata de uma sociedade de pessoas que busca na experiência sensitiva da degustação da comida uma razão pra viver. E a encontram, em pratos sofisticados e no famigerado Fugu, que não cortado corretamente, emana um veneno mortal. Sexo na Cabeça é um sensacional livro sobre a realidade – e as fantasias – da sexualidade dos brasileiros. E do próprio Luis Fernando, que dedicou alguns dos contos para Luana Piovani – inclusive o sensacional conto em que ele pede a um gênio um livro, um disco e a Luana, para passar o resto dos seus dias em uma ilha deserta, incluindo as posteriores investidas nela... “meu relacionamento com a Luana é avuncular” eu retirei, inclusive, de uma entrevista concedida por Luis Fernando. Também retirei de um dos seus contos o fato dele tripudiar a palavra “Hermeneutas”. Também não é de minha autoria a frase que retirei, do mesmo conto do gênio, em que a Luana Piovani lhe diz sincera, no final: “Pô, Luis Fernando”

E, só para constar, esse conto é dedicado a William George Figueroa.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Chokmah

Coisa engraçada, a memória, este impalpável e inumerável objeto que detemos, que utilizamos tanto quanto a própria respiração, que tal como esta é vital para nossa existência, e que, talvez por ironia, quase nunca lembramos de agradecê-la, de saudá-la, Ó memória, és tu que me lembra da vida, és tu que aponta sempre meus afazeres, és tu, diariamente, que me diz, Acordas, tem de ir trabalhar, tem de ganhar o sustento, o pão, o vinho de cada dia, sem tu não me lembraria de meu nome e do nome das tantas coisas do mundo. Não é objectivo deste trabalho um peremptório ensaio sobre a memória, sobre essa pouco ou nada sei mais que o senso comum, que a memória é, age e influencia por ação ou por omissão em todos nós, diariamente e durante a vida inteira, e essa constatação já me é suficiente, não importa o que concluam os filósofos e os cientistas destinados a estudar tão intrincado problema. Aos que não se aperceberam, repetirei minha sentença, A memória nos é vital, por ação e por omissão, pelas coisas que não nos deixa esquecer, salvo falhas justificáveis, as coisas que marcamos como importantes, como o aniversário da filha mais nova, o nome do cachorro, a idade que tens sua esposa e também pelas coisas que não nos deixa lembrar, assim não nos transformando em um repositório infindável de acontecimentos passados, de pensamentos pretéritos de previsões futuras, de outras lembranças, menos pretéritas, mas ainda assim no pretérito, das frustrações de que o futuro, vivido e relegado ao imutável passado, não foi como o previsto, e de tantas outras chatices inumeráveis, o tom de gravata desbotada de um colega de trabalho, o café fraco de uma tia, o sapato pouco confortável em uma reunião, fatos passados sem que fossem marcados com o crivo de importante, fatos que a memória tratou de separar, o joio do trigo, e assim postergou para o esquecimento. Com desculpas pelo trocadilho, esquecemos que a memória não é importante apenas posictivamente, lembrando coisas, mas também em seu oposto, de forma negativa, esquecendo o irrelevante.
Obviamente, mesmo este admirável e inexplicável instituto humano não é perfeitamente eficaz, objectivamente dizendo, na triagem do que é relevo e do que não é, e talvez não seja perfeito pelo simples fato de pertencer ao homem, que é imperfeito por natureza própria. Desta outra sentença, muitos outros ensaios podiam surgir, a natureza da memória e o porquê de suas falhas, a sua gastura com o tempo, os lapsos sem razões por determinados momentos, a sua reação com situações extremas, de medo e de perigo, os picos, os sonhos, a relação dos sonhos com o que conhecemos, as negligências propositais, os esquecimentos imperdoáveis. Entre essas duas últimas características, quais sejam, de uma justificável negligência e de um esquecimento intolerável, situo o que ocorreu comigo em relação ao caso da terrível e curiosa história de Jesus Alcântara Machado. Agora, com auxilio de glossários, de catálogos sobre o acidente e ainda de factos supervenientes marcados em brasa em mim pela memória, sou capaz de narrar o terrível acidente do empresário, com todas as minúcias, com todos os pormenores, mesmo os detalhes esquecidos por todos, o choro sentido da rapariga mais nova, a viúva em seu luto, em frente à câmera da TV, forçando um choro que dificilmente saiu. O facto é que, quando o acidente se deu, no princípio de 90, ocorreu a comoção geral, natural das tragédias, a catarse própria do instinto humano, pessoas dizendo para elas mesmas, Ai, se fosse meu pai, se fosse minha família nesse acidente, forças a família, mas bênçãos a Deus que isso não ocorreu comigo, etc., o justificável egoísmo misturado com pena na hora da morte alheia, ainda mais quando a morte alheia não é natural, mas antes, fruto de uma fatalidade inesperada, um acidente, um tombo, um enfarto, dando a todos a reacção falsa de que uma morte sem avisos gera mais dor do que a ausência decorrente de uma morte anunciada.
Jesus Alcântara Machado partiu de Lisboa desgostoso de si em Março de 90, disseram todas as línguas, quando entrou no avião monomotor particular, um dos últimos regalos que se permitiu, o avião pequeno, tripulado por ele e seu piloto, com a alcunha Alcântara Machado inscrita sobre a asa, e subiu para o vôo final, o vôo que o levou desta vida. Quando se divulgou na TV o desastre, todos se espantaram, todos se apiedaram, o triste fim de um importante empresário Lisboeta que, como convém às grandes biografias, nasceu sem nada e fez seu império próprio, a custa de seu esforço e de seu labor, no caso específico, um império de bolachinhas doces, com sabor de caramelo e a preços sempre acessíveis. Com esta fórmula, ergueu seu império de caramelo nas décadas de setenta e oitenta, com posses, títulos e honrarias, douto e honrado cidadão Lisboeta, dono de apartamentos, de terras, de reconhecimento e conheceu o princípio do ocaso no fim da década de 80, dizem, pelo fruto precoce da globalização, que introduziu bolachas de todos os países, de todos os sabores e com preços ainda mais acessíveis que as bolachinhas redondas de caramelo de Alcântara Machado. A globalização teve o mesmo efeito que se qualquer totalitarismo tivesse ocupado todo Portugal e assim dissesse, Olha, tuas bolachinhas já não são mais queridas por nós, que agora detemos o poder, e este sabor caramelo, a partir de então, será considerado subversivo ao sistema imposto. E tudo isso porque, pelas vias de facto ou de maneira sutil, o resultado foi o mesmo para Alcântara Machado, foi o de simplesmente a ordem vigente dizer, Não comercializes mais tuas bolachinhas porque não queremos. E o lento ocaso devido às transformações políticas e econômicas se transformou rapidamente no crepúsculo, a já anunciada noite da falência e a conseqüente queda e vergonha de uma das famílias mais emblemáticas da alta sociedade portuguesa, para um limbo pior que o dos pobres, que é o daqueles que foram ricos e tiveram posse e depois volveram à miserabilidade. Obviamente, os comentários, muitos maldosos ou infundados, correram alguns jornais, alguns telenoticiários e muitas bocas, transformando-se, aumentando a desgraça da família e assim foi que chegaram até mim, creio, naqueles tempos, o fim das bolachinhas, a desgraça de Jesus Alcântara Machado, de sua esposa, de seu filho mais velho já iniciado nos decadentes negócios e de duas raparigas impúberes, que não tiveram tempo de usufruir da glória conquistada por seu pai e pelas agora infames bolachas. Mas e as posses, os terrenos, os títulos da dívida pública, todas as aplicações, perguntam-se-lhe todos, mas a família Alcântara Machado não tinha aplicações, simplesmente pelo facto de que acreditavam na eternidade das bolachinhas, que deveriam ser imunes ao tempo e a política e deveriam proporcionar sempre uma vida soberana, mas, como dicto, não o foram, transformaram-se em persona non grata da ordem vigente e as posses todas não foram suficientes para pagar as dívidas, o mau gerenciamento da empresa e ainda todos os direitos trabalhistas dos empregados.
E quando o avião da família rompeu os céus, levava consigo não só o corpo do empresário, mas toda a sua história feita de bolachas, todo esse passado glorioso que acima descrevi e assim que o avião se despedaçou em partes no ar e se quedou, não foi simplesmente o corpo que restou dilacerado; também o estavam toda a honra e glória da família Alcântara Machado. Mas a catarse, como também o é natural, dissipou-se, tão rápido quanto se formou no seio de toda a sociedade portuguesa e, passado um ano, ninguém mais se lembrava do ocorrido e do que acontecera posteriormente aos parentes que continuaram a viver. Confesso que me incluo à lista acima dicta, não tenho o mesmo sobrenome do falecido no acidente, já tenho muitos mortos próprios para me lamentar e, de todo modo, nunca gostei de bolachas de caramelo, e por tudo isso, já passados alguns meses, não me recordava quem fora Jesus Alcântara Machado. Não lembrei quando troçaram dele na reunião do partido, Esse é que se saiu bem, viveu o máximo da vida que pode, com luxúria, com mulheres, com glamour, esbanjou tudo e quando as mesmas pessoas que lhe deram tudo resolveram lhe tirar, saiu dessa vida. Foi logo repreendido, por outro, sujeito novo no partido, inominado, magro, Barbudo, olheiras fundas e escuras, sempre silente, sempre as mesmas camisas puídas, sujas, o odor muitas vezes demonstrando que tinha varado a noite bebendo e muitas outras noites sem conhecer uma ducha, cabelos desgrenhados, dizem, recém chegado a Lisboa, mas insuspeito, já que barbudos são o que mais se vê entrando e saindo no Partido, Não digas isso, irmão, ele foi capitalista, pode ter oprimido pessoas, mas não nos compete julgar, dizer, peremptoriamente que foi aproveitador ou que deixou de viver porque as coisas pioraram. Mas a repreensão em favor de um capitalista, antigo milionário empresário, se não é aceita em condições normais, quiçá vindas de um sujeito que não se sabe o nome, que não se sabe a procedência, sem credenciais no Partido, sem a eloqüência dos antigos coronéis barbudos, E tu companheiro, recriminas-me por denunciar um safado, um corruptor, explorador de muitos trabalhadores, pais de família desesperados, perguntou o antigo coronel, Por acaso queres me dizer que tende a proteger o falecido. Não quero proteger ninguém, respondeu o Barbudo inominado, já sem a calma, já sem o silêncio costumeiro das poucas reuniões que ali comparecera, os olhos injetados, de bebida e da discussão, as mãos um pouco trêmulas, Não posso proteger ninguém, já que não consigo nem mesmo me proteger, apenas acho que acusares um terceiro, que aqui não estás nem pode estar e que não tem defesa, é injusto. O antigo coronel do partido reagiu, já vermelho, já inflamado, porém ensaiado, a discussão acalorada sempre foi afeita aos membros do Partido, cada ambiente tem suas mostras próprias de virilidade e, neste, a eloqüência, a rispidez e a raiva nos discursos são indicadores dos machos que se sobressaem, e disse, Blasfêmia, agora no partido que tanto ajudei durante tantas décadas, que tanto combati, não posso mais sequer citar o nome de um infame rato, que sempre repugnei, que morreu covardemente, Covardemente, retrucou o Barbudo sem nome, como podes dizer que um acidente de avião é morrer de forma covarde. Pelo que eu saiba, respondeu o Coronel, a fábrica que ele sempre manteve estava a beira da falência, Não estava, apenas foi uma crise passageira e, logo após o acidente, a fábrica seguiu o mesmo curso de sempre, reergueu-se, há vários trabalhadores honestos lá, bem tratados, respeitados, com toda a dignidade do labor. Não tente me fazer acreditar nisso, disse o Coronel, Pelo que me contaram, o morto não morreu, suicidou-se, a tragédia não foi uma fatalidade, mas sim um facto premeditado... e nisso parou de falar porque o Barbudo, sem nome, sem história, sempre calado e sempre calmo, presente em poucas reuniões anteriores, grudou na garganta do velho Cacique, ex-presidente do partido, honorável por todas as condecorações, e disse, Velho pilantra, não fales do que não sabe, quem achas que és para julgar uma vida, você que nunca fez nada além de politicagens.
Aos poucos, da surpresa, os demais conseguiram conter a raiva sem horários e sem propósitos daquele que nunca souberam o nome e que nunca saberiam. Inútil ter que acrescentar que foi expulso sumariamente por todos os membros e convidado a nunca mais aparecer naquelas fileiras, para minha tristeza, já que tentei dissuadi-los, tentei fazer, inutilmente, que ao menos dessem chance para que falasse seu nome, sua história e o motivo de sua raiva. Não deixaram e não permitiram que eu fosse atrás, e esse foi o gérmen para que eu pesquisasse profundamente a vida e morte de Jesus Alcântara Machado e que, assim, por este facto, cravasse em minha memória como lembrança a ser guardada, pela peculiaridade e pela estranheza. Peculiar por que, conforme dito, brigas ocorrem freqüentemente no partido, mas, como já dito, são todas previamente ensaiadas, discursadas e politizadas, e nunca dessa forma, já nas vias de facto, e estranha porque nada justificava a raiva do barbudo sem nome, já que, obviamente, em nosso meio, maldizíamos comumente fulano ou beltrano, e uma briga, por um antigo fabricante de bolachas, falecido e esquecido, pareceu-me, não totalmente fora de propósitos, mas sim, de propósitos ocultos, que ali passaram despercebidos por todos, incluindo-me. Com essas premissas e indagações permaneci alguns dias após o incidente, não retornei ao partido por que sabia que ali o assunto estava julgado e sentenciado já, dessa forma, O barbudo sem nome não passou de um espião, que não conteve a ira ao escutar verdades de um dos seus, e não procurei saber nada com os amigos do empresário falecido, por que me pareceu de uma intromissão sem razões. Mas a curiosidade não cedeu e busquei em jornais antigos, em memórias melhores que a minha na biblioteca municipal tudo aquilo relacionado com a vida do morto e tudo o que se passou antes e depois do acidente. Obviamente, descobri o que o senso comum sabia, da terrível tragédia, da história da família, do apogeu e do declínio das bolachinhas sabor caramelo, e do triste fim de Jesus Alcântara Machado, somado com outras proposições, menos verificáveis, mais afeitas ao ideário popular, como a que o Coronel falou no dia do incidente, que o acidente foi combinado, que Jesus se suicidou no momento em que descobriu não ter mais forças para reerguer seu império, entre outras lendas, que não foram suficientes para acalmar minha curiosidade, Porque o barbudo sem nome e sem história defendeu com sua vida a memória do empresário morto, não parava de me questionar. Levado por esta curiosidade, deixei-me andar pelas ruas de Lisboa – nessa época ainda não sofria de represálias nem de muito assédio – atrás de possíveis pistas, que pudessem me mostrar o que realmente ocorreu com o empresário e porque tanta paixão em protegê-lo detinha aquele comunista sem nome. Para certa surpresa, encontrei a fábrica de Bolachinhas de sabor caramelo no local em que deveria estar e esta não estava deteriorada, não estava fantasmagórica e vazia, como convém a todas as fábricas portuguesas que sucumbiram à concorrência do mercado externo, mas estava sim, lá, letreiros grandes e luminosos, intensa movimentação de pessoas e carros, e a chaminé pulsante, indicador maior que a atividade está intensa como outrora, como nos bons tempos de Jesus. O velho Cacique disse que a empresa falira e o Barbudo sem nome que o mau momento havia passado e, nisso, admiti, ao ver o letreiro, a movimentação e a chaminé, tinha razão o Barbudo desconhecido, e talvez essa singela afirmação me deu coragens de entrar na fábrica, de talvez com sorte conversar com a viúva, omitir o acontecido, mentir minhas credenciais, Sou jornalista do jornal tal, espero que não se incomode, estamos realizando uma série de reportagens sobre os perigos aéreos e possíveis prevenções, será que a senhora poderia conceder o relato da morte do seu marido, se não lhe fosse inconveniente. E com esses pensamentos, cruzei o portão central, e me identifiquei na portaria, Quem és, Chamam-me José, sou jornalista, E que aqui queres, saber da qualidade das bolachinhas por acaso, Não, quero apenas conversar com a viúva do Senhor José de Alcântara Machado, o motivo de minha entrevista é justamente o acidente aéreo. O empregado se silenciou, pensou alguns segundos, e ligou para outra pessoa, que chamou a viúva, Olha, Sra. Machado, aqui está um senhor que se diz jornalista e que quer lhe perguntar a respeito do acidente aéreo de seu marido... sim... a senhora está ocupada... e não falas nada sobre o Sr. Jesus, a não ser na presença de teus advogados... certo.
Tenho agora a certeza que uma simples conversa com a viúva, a respeito do acidente e de como, por motivos judiciais e factuais posteriores, a fábrica se reergueu, insuspeitável fênix no coração de Lisboa, me bastaria, mas a peremptória resposta negativa serviu apenas de lenha em minha inquietação, para que eu me desse conta que algum tabu se encontrava certo entre a história oficial e o mito popular. A negativa me deu coragens e forças para tratar do assunto com outras pessoas, uma barreira estava quebrada já que eu tomara coragem de falar com a pessoa mais delicada a se tratar do caso, que sempre é a viúva e o facto de mentir uma vez dizendo-me jornalista justificou as posteriores mentiras, sempre da mesma forma, Olá, sou do jornal tal, sabes alguma coisa da morte de Jesus de Alcântara Machado. E com essa credencial falsa e essa insistente pergunta foi que consegui a identidade do piloto sobrevivente, única testemunha da morte do empresário. Dizem que, como o avião caiu no meio da mata, o piloto apareceu alguns dias depois apenas, em frangalhos, e não se mostrou à imprensa nem para as câmeras, obliterado inteiramente pelo facto de sido ele o sobrevivente e morto o antigo rico e famoso empresário. Com algum custo, e sempre com a bem vinda ajuda do dinheiro para pagar um funcionário subalterno da prefeitura , deparei-me na casa, simples, no Alemtejo, salvo engano habitada pelo piloto, e sua esposa e seus filhos. Ó de casa, fiz a saudação trivial e logo me apareceu na porta uma mulher, robusta e sisuda, Que queres, perguntou-me, Quero conversar com o marido da senhora, disse. Se, por força de linguagem ou de poética, algum dia escrevesse um romance sobre tal caso, dir-lhes-iam que a expressão dela se alterou, lentamente, como a do porteiro quando soube que eu queria perguntar à viúva sobre o falecido. Alterou-se por alguns longos segundos, a expressão talvez de incredulidade ou debilidade, de que pedimos algo impossível, já que é impossível falar com os mortos. Meu marido não está, respondeu secamente ela, Quando ele chega, disse eu também de forma seca, Não chega, não chegarás nunca mais, respondeu-me, fazendo com que eu compreendesse, embora não soubesse os motivos, que eu não conseguiria falar com o piloto do avião abatido, Porque não voltarás, perguntei, Não voltarás porque não voltarás, respondeu-me, Não voltarás, porque me abandonou, Abandonou como, e após alguns segundos de silêncio ela enfim disse, Abandonou, entregou-se a bebida, ao vício, as prostitutas de Lisboa, as causas políticas impossíveis, não voltarás e, mesmo que quisesse, eu não aceitaria, nem eu, nem minhas filhas, órfãs de pai. Pedi desculpas e me despedi da esposa do piloto, um pouco acanhado de, mesmo sem querer, cutucar uma ferida aberta, a de um marido pródigo, que nunca irá se redimir, nunca voltarás e dirás, Desculpe, mulher, errei, mas estou de volta, para teus braços e para educar, como se convém a um pai de família, essas pequenas gajas.
Um pouco atordoado, caminhei a esmo, deixando-me levar por bifurcações e esquinas que não me recordo o nome, por quarteirões esquecidos e por placas que nada me diziam, caminhei ao acaso, apenas pensando em todos os fatos ocorridos nos dias anteriores, um comunista sem nome que sabia e protegia a memória suspeita de um empresário falido, a reserva injustificada da viúva, a resignação e o remorso da outra viúva, qual seja, a do piloto, que perdeu o marido, não para a certeza da morte, mas para a certeza da luxúria que acomete todo homem, mais cedo ou mais tarde e, com estes pensamentos, deparei-me junto a um local propício para se pensar em morte, o cemitério. Porque não, pensei, e assim, adentrei, e perguntei para um funcionário sobre a lápide de Jesus Alcântara Machado, que ficava algumas quadras abaixo. Não tive dificuldades para encontrar a enorme lápide em mármore, com adornos suntuosos em dourado, alguns vasos de crisântemos e cravos, a inscrição de um excerto de um evangelho que agora não me recordo, mas que remete, em seu todo, à volta infalível de Jesus. Porem, mais que a apolíptica frase, assustou-me a foto em preto e branco, insculpida no belo mármore, ao lado dos cravos, o semblante sereno de Jesus Alcântara Machado. Assustou-me não sei por que, e isso foi causa ainda maior de assombro, olhei para a figura, certamente conhecida, certamente das TVs, dos jornais, das fofocas, todas remetidas à fábrica e ao acidente, mas nada disso é aterrorizante. Mas o que pode ser aterrorizante então, questionei-me, tentando recapitular os pensamentos, organizar algum arquivo guardado e esquecido pela memória, o porquê do arrepio diante de coisas elementares, o mármore, a réplica do ouro nas letras e na citação do evangelho, mais embaixo um corpo já decomposto, já devorado pela terra. Jesus morto, a apregoação de sua volta, a sua memória contada por um sem nomes e sem histórias, é possível que isso possa arrepiar algum adulto normal, sem fobias, sem fraquezas de pensamentos, questionei-me mais uma vez, e não pude me responder ali, os olhos duros de Jesus me perscrutando pela lápide. Deixei o cemitério quase correndo, com um medo desconhecido, um medo dos mortos que eu julgava não ter, a imaginação volvendo-se e misturando-se com a memória, com os rostos conhecidos, com os antigos falecidos, todos, como que estivessem prontos para levantar de suas tumbas, não como insurrectos, mas como se, de um dia para o outro, não existisse mais diferenças entre a vida e a morte, entre os que estão aqui e os que estão além. Corri, da forma e pelo tempo que meu corpo permitiu, atravessando tumbas, de crianças, quase bebês ainda, que choravam, não a morte porque não a compreendiam, já que viveram sem saber da existência desta palavra, de jovens, vitimados por acidentes ou doenças, antes de seu tempo natural, adultos, idosos, que amaram longamente a vida e conseguiram cumprir todo o seu curso, e me chamavam já, dizendo-me talvez para não me assustar com o que, dentro de tempos, acabaria por ocorrer em mim também. Corri, calado, fechando os ouvidos para não ouvir tantas vozes da morte, de tantos familiares, amigos, conhecidos e, mesmo dos desconhecidos, porque a voz das tumbas soam iguais, dos amigos e dos desconhecidos, do empresário Jesus de Alcântara Machado, ou de um de seus muitos serviçais. Corri até onde pude, não muito longe, mas já fora da circunscrição dos mortos, assustado pelo facto de, pela primeira vez, os mortos se esquecerem desta sua condição peculiar, que é justamente a ausência daquilo que me move a falar, a pensar e a escrever estas linhas, que é a vida. E, por instinto, deixei o local em que estão nominados todos os mortos e cheguei ao local em que estão demarcados todos os vivos, o Registo Civil, ainda sem esquecer o ocorrido, e lá, pulando as palavras, a ausência de uma explicativa, junto à forte respiração, perguntei ao funcionário que, de forma literal, tem como ofício guardar a vida, com os respectivos factos importantes dessa, como o casamento, o divórcio, a paternidade, e a morte, com as únicas conseqüências palpáveis que advém desta, a herança, a transmissão das dívidas, o testamento, que me mostrasse o registro de Jesus de Alcântara Machado. Este me escutou mecânico, não me reconheceu, não reconheceu certamente o empresário falecido em um terrível acidente, para ele, corretamente, um nome é sempre um nome, vivo ou morto, indiferentemente, e assim saiu, fora do alcance da minha visão, por entre as grandes colunas de nomes dos vivos que parelhava-se com a coluna também colossal do nome dos mortos. Não sei que método de arquivologia utilizou, não sei que critérios tão eficientes este funcionário teve, ao apenas escrever o nome do empresário em um papel e sair, por todos os nomes, pelo labirinto de informações de todos, e me encontrar justamente o pedido, mas o facto é que isso muito me impressionou, pela eficácia, pelo pouco tempo, daquela terrível busca. Demorei-me, trêmulo, com o papel que continha a vida e morte do empresário sem coragem de abri-lo, antes presenciara já um pequeno milagre, que me pareceu o simples achado da pessoa que eu queria pelo funcionário e, durante aquele pequeno momento, comparei-o a um bibliotecário, que deve conhecer todo o universo contido nos livros postos a sua guarda, com a diferença que meu funcionário cuida de histórias menos poéticas, porém mais reais, comparei-o com o labirinto do Minotauro, em que há a vital necessidade do fio de Ariadne para lembrarmos de nossa procedência, e comparei-o com Deus que, se mesmo existisse, segundo os livros sagrados, deve ter um labor parecido, sempre a olhar e catalogar fichas, que somos nós, indistintamente, na vida e na morte. Para maior surpresa, não constava na ficha do empresário a sua morte, ocorrida alguns meses antes, Que significa isso, perguntei, Porque aqui não consta a morte dessa pessoa, Significa que ela esta viva, Como, a morte deste aqui é facto ocorrido e conhecido por todos, Digo, significa que, formalmente, esta pessoa está viva, não me creia mal senhor, com tanto trabalho e tanto tempo neste labor, chega o inevitável momento em que estas fichas são as únicas testemunhas e únicas fontes de minha verdade, Mas se esta pessoa, cujo registro tenho em mãos, morreu, porque motivo não se consta aqui sua morte, esse não deveria ser o processo natural, Deveria, és o fato natural, mas essa pergunta que me fazes não-lho posso responder, Porque não queres, Não, porque não sei, não vês que perguntar para um simples funcionário do registro civil o porquê da inexistência do registro de sua morte é o mesmo que olhar para os céus e perguntar, Ó Deus, porque mataste ele.
Com esse funcionário, descobri que o responsável por encaminhar a prova do óbito para o Registro era incumbência do médico legista, responsável pela averiguação dos motivos da morte, mas esse facto era apenas uma informação burocrática e que já tinha pouco importância, o que realmente me valia naquele momento era saber que o empresário falecido estava vivo, pelo menos no Registro Civil, ao menos que fosse por um descuido humano, de encaminhamento de informações, ou ainda um negligente esquecimento de se apontar na ficha, Este morreu, como Deus deve, em certas ocasiões, também negligenciar ou esquecer, permitindo vidas ceifadas antes da hora, ou pessoas esquecidas com longa vida aqui na terra. Andando pelas ruas, entre vidas e nomes, um sentimento novo surgiu, um sentimento feliz, que respondia minhas indagações do dia da reunião do partido e, por esse motivo, decidi ir ao médico legista, para ouvir de sua boca os motivos pelos quais não se constava a morte do empresário. Estes devaneios apenas saíram de minha cabeça quando escutei um mendigo com um cartaz apoliptíco e gritando, Jesus vive, pelo que parei, olhei e o respondi, Está certíssimo, nunca disse coisa tão certa em sua vida, e ele, Isso irmão, certamente aí vive um coração contrito, não nos demoremos mais no pecado, busquemos Jesus, e eu, Sim, é isso que faço exatamente nesse momento, e ele concluiu, Vá em paz então, quem busca Jesus, busca a vida eterna. Com essa benção parti, embora não tivesse pretensões tão altas e embora em meu ínterim soubesse que nossos sujeitos eram diferentes, mas mesmo assim as coincidências vieram a calhar e, posso dizer agora, devo ser uma das poucas pessoas que já foram conversar com o médico legista sobre a terrível morte de fulano e mesmo assim radiante de felicidade. Nem mesmo o pesado ambiente do Instituto de Medicina Legal alterou meu animo, nem mesmo quando me foi permitido entrar, pelo ambiente escuro e por entre aquelas gavetas, que continha cada qual o seu nome e, dentro, um corpo sem vida. Sem cerimônias perguntei ao médico, quero que me diga o que sabes da vida de Jesus Alcântara Machado e, com essa pergunta, ele se assustou, embora seu rosto não tivesse ficado lívido como o do Porteiro e como o da Mulher do Piloto, que não estavam habituados a falar da morte e, assim me disse, Venha para dentro e te direi tudo o que sei. Segui-o para dentro do Instituto, para salas geladas, com muitas gavetas, cujas identificações eram feitas da maneira singular A-2, J-8, ou K-9, por exemplo, e me deparei com alguns corpos, uns em perfeita conservação, como se apenas repousassem um sono tranqüilo e efêmero, outros já com sinais de decomposição, outros ainda mutilados, vitimados talvez por acidentes, como o que ocorreu com meu procurado. Espero que não estejas assustado com todos esses corpos, disse ele, Não me assusto não, tenho mais medo dos vivos, respondi eu, O quer dizer com isso, perguntou ele, parando e olhando directamente para mim, Ora, quero apenas dizer que tenho mais medo dos vivos, porque estes sim podem me fazer algum mal, ao contrário desses corpos que não podem me alcançar, de toda forma o que disse foi apenas uma frase, dessas já prontas, não me leve tão a sério, Ah bom, disse-me, ainda contrafeito com minha presença e com aquele diálogo. Por fim, abriu uma porta, que desembocava em uma sala circular, extremamente branca e extremamente iluminada, sala esta simples, com um armário, contendo alguns utensílios próprios da profissão, como bisturis, facas, amoníacos, formol, linhas de costura, e um circulo giratório central, menor, que era a cama dos corpos que ali passavam, e ainda umas três ou quatro cadeiras, espalhadas pela sala. Diga-me, o que queres saber da morte de Jesus de Alcântara Machado, corrigi-o, Quero saber da vida de Jesus de Alcântara Machado, Como assim, não sabes por acaso que ele morreu em um acidente aéreo, Sei, como todo mundo sabe, mas sei mais, sei que no Registo Civil consta que ele vivo está, da mesma forma que eu e você, E quem é o senhor para querer saber essas coisas, um parente ou amigo, Não, não sou nada, mas acho que não seja ilícito, pelas leis de nosso País, ou ainda imoral, por nossas normas consuetudinárias, que alguém tenha curiosidade de saber sobre a vida e morte de alguém, mesmo que esse alguém seja desconhecido, a vida e a morte, esses dois fatos elementares, não são como a privacidade ou os dados bancários, que são sigilosos, mas são sim públicos, Não importa, queres saber algo que não te pertences, velho, vá chorar teus próprios mortos, deixe os outros em paz, Não pertences a mim nem a você, como também não nos pertencem nenhuma morte, nem a nossa própria, Creio que posso dizer que tua morte me pertence sim, sabes que está velho, talvez não dure um dia ou uma década, lembre-se deste lugar, olhe bem para esta sala, já a que próxima vez que aqui estiver, abrir-te-ei e o costurarei, sem dó, sem piedade, teu corpo me pertencerá, por alguns momentos, Pois então como benevolência, diga para este velho, que daqui algum tempo terás, se tu também teve por alguns momentos o corpo de Jesus Alcântara Machado, És insistente e te direi, embora nada poderás fazer, tua própria morte já se avizinha e creio que seja melhor te preocupar com esta. Com o coração palpitante, talvez pela praga, talvez por saber a verdade, escondi minhas mãos, suadas e tremulas, fiz-me silêncio e apenas escutei a voz raivosa do médico legista, que não parou um segundo de mexer nos bisturis da mesa circular, Quem morreu no acidente foi o piloto e não Jesus, o corpo que aqui esteve foi do piloto e, no velório, com o caixão fechado, ninguém pode saber que aquele não era Jesus, que sua morte fora uma farsa, Mas porque fizeste isso, Após o acidente, um corpo foi encontrado e trazido para cá, ainda não identificado e pouco tempo depois, recebi a visita do sobrevivente que contou em prantos sua terrível história e sua falência, dizia ele em um convulsivo choro que deveria ser o morto e não o piloto, porque, se fosse ele quem tivesse sucumbido, ao menos a família ganharia o dinheiro do seguro de vida, que seria vital para a fábrica, E assim ele pediu para que trocassem, Não, não pediu, eu que sugeri, para mim pouco importa quem morreu ou quem vive, só troquei os nomes e cuidei para que não investigassem a vida do piloto, por que assim descobririam a verdade, menti para a esposa de Jesus e para a esposa do Piloto, Por que, perguntei atônito, Por que esta foi a notícia que mais os agradou, respondeu-me, sem culpas, A esposa do empresário continua sua vida, pode ter certeza que, para ela, assim como para Jesus, a morte foi uma forma de manter a honra e o poder de seu sobrenome, ao contrário de sua vida, que seria motivo de risos, e a vida do Piloto, ao menos para a Mulher deste, é mais reconfortante do que a morte, não importa se esta vida seja longe, seja separada de sua própria família, Não posso ter toda essa certeza, respondi e, em seguida, perguntei-o, Achas mesmo que as duas famílias não sabem o que ocorreu, Não posso adivinhar o que se passa na cabeça dessas esposas, o que cuidei foi apenas de dar a notícia, se elas não acreditaram, fingiram muito bem.
Sai do Instituto Médico Legal com a confirmação de que minhas evidências estavam corretas, as quais rememorei caminhando enquanto saia do local e que agora posso falar, para que saibam todos o raciocínio que me ocorreu. Primeiro, uma morte bem vinda, de um empresário falido, recoberto de dívidas, de credores, de injurias e uma exorbitante quantia paga pelo seguro de vida, feita ainda nos tempos em que reinavam as bolachas da família Alcântara Machado, como pude confirmar por jornais e, ainda, ao olhar a imponente fábrica, perfeitamente adaptada aos novos tempos, às indústrias modernas e estrangeiras , segundo, o estranho caso do Piloto, que não mais retornou para casa depois do acidente, o acidente que vitimou seu patrão e que, possivelmente, o traria muitas complicações na justiça e na polícia, se fosse comprovada a sua negligência no pouso fatal, terceiro, o facto da evidência deixada pelo médico-legista, O Sr. Jesus está presente na casa dos mortos, uma vez que seu nome, sua foto e toda a sua memória estão encaixotados em uma lápide de mármore muito fina e, no entanto, não deixa de viver, ao menos nominalmente, já que, no registo Civil, assim consta que é – vivo. Com esse conjunto probatório, regalei-me, como um desses fantásticos detetives que detêm perspicazes e tenazes linhas de raciocínio, mas meu orgulho durou pouco, talvez frações de segundo até eu me dar conta que não era tão perspicaz assim, um outro elemento bem mais pueril havia influenciado em meu raciocínio. Para acabar com meu pequeno mistério, havia alguma coisa a ser feita e decidi fazer naquele mesmo momento, logo após ter minha vida maldita por aquele que será certamente o açougueiro do meu corpo - decidi ir novamente ao cemitério. E fui, com a esperança que logo se transformou em realidade, não mais me espreitavam os corpos da morte como outrora, não mais escutavam vozes familiares e desconhecidas, gritos de jovens e lamúrias dos velhos, gritos embrutecidos dos homens e choros sentidos de raparigas em flor, tudo era silêncio, tudo voltado ao seu estado natural, as moléculas, segundo a segundo, transformando-se na terra, retornando ao seu estado primitivo, neste seu incansável ciclo, para outra vez formar corpos de bebês chorosos, de torrentes cíclicas ou de plantas pouco duradouras. Tudo, todos, deixando a cada segundo de ser o que foram, cada vez mais distantes do nome constante da lápide a poucos metros, que serve de lembrança aos que continuam vivos, mas nada significa para os que estão mortos, é um nome, como “Cão”, “Vida”, “Baralho” ou mesmo os terríveis como “Suicídio”, “Enchente”, “Peste” ou “Morte”. Com estes pensamentos, parei, pensei, Os nomes são pouco importantes, pouco importa eu chorar diante do túmulo de Jesus ou de Fulano ou Beltrano já que agora são todos iguais. Mas para alcançar o propósito que me levara ao cemitério, era necessário ir ao féretro onde devia estar os restos mortais do empresário que não morreu e a este fui, lentamente, o caminho decorado, a certeza do que encontraria pela frente. Olhei a foto do empresário, a foto certamente dos bons tempos, do auge das bolachas, a foto colorida, com o cabelo ainda escuro, o riso ainda largo, ainda sem pés de galinha ou rugas, sem a expressão de cansado e sem as olheiras escuras, características estas que ficaram marcadas em todos os jornais, no dia em que o avião caiu. Mas o cerne de tudo aquilo era outro, além de se estar contente ou triste, velho ou novo, bem conservado ou putrefado, era sim, quem era aquela pessoa, definitivamente, e o era a foto e aquele que, nesse momento, apertou meu ombro, o Barbudo sem nome. Como estás, Jesus, saudei-o pelo nome que lhe foi dado na pia, Não digas isso, respondeu-me, Essa pessoa morreu e seu esquife está diante de nós, não estás vendo, Estou, mas essa pessoa não morreu, Não, retrucou-me, Mas como é que aqui estás então, Essa pessoa se suicidou, o que é diverso, Pelo que sei, essa pessoa morreu de acidente de avião, um acidente que, segundo informações oficiais, ocorreu por problemas mecânicos e, por tudo isso, creio que não possa nominar essa morte de suicídio, mas sim de fatalidade, Não importa o nome que queiram dar, você nunca leu um livro meu, Não, porque, Porque simplesmente divirjo da história oficial, sempre acreditei que a verdadeira história, atrás da história contada, tem mais poesia, Pois essa não deve ser contada, não tem poesias, mas sim lágrimas, As lágrimas sempre contem poesias escondidas, camarada, mesmo o de uma pessoa que decidiu matar a si próprio e não creia ser isso um suicídio, Não me matei de verdade, já que aqui estou, Não, como tu a pouco me disse, Jesus está morto bem aqui, na frente de nós, você é outra coisa, distinta, inominada, e a ti pergunto, o que és, Sou aquele que sou, como já escutei do evangelho, sou o nada, a ausência de caráter, de vida, de família, de amigos, vivo perambulando entre círculos, minha barba desgrenhada e minha magreza não permitem que me reconheçam de pronto, com o passar de um certo tempo, deixo o círculo, para que não reconheçam meus traços e para que eu mesmo não possa me trair, Como daquela vez que te insultaram, perguntei, Como daquela vez que insultaram Jesus, respondeu, Eu devia me desapegar completamente da pessoa que fui, do empresário bem sucedido, das mulheres sempre ao meu redor, dos muitos risos dos outros, das coisas que o dinheiro sempre consegue comprar, mas não, as vezes esqueço-me que não sou nada, e me traio ou choro, com saudades do passado, Tens saudades do passado, Quando esqueço o que sou, tenho, quando me recordo, não, o Nada não pode ter lembranças, logo não pode ter saudades.
A extensa conversa apenas acentuava o cansaço que me acometia, as grandes caminhadas, as maldades ditas pelo Médico legista e a última coisa que eu queria escutar eram justificativas de alguém que se matara, as razões do suicídio, o pensamento focado na fábrica, no bem estar da família, etc., etc., e assim tratei de me despedir, Se és nada, creio que seja melhor não conversarmos, aos outros deve ficar feio este monólogo de um velho no cemitério, creio que me darão por senil e débil, Faça como queres, com a condição que nunca reproduza o diálogo que travamos, O monólogo que travei, caçoei, Se reproduzido, será incompreensível e sem sentidos, pode ficar tranqüilo. Ele riu ou eu assim fingi acreditar, e disse, Vás, esqueças de mim, se lembrares, lembra apenas de minha memória, porque é apenas isso que sou, És o nada, corrigi-o novamente, És como tudo aqui no cemitério, apenas matéria orgânica, és nada e, contradição, és Todos os Nomes que neste cemitério constam, Não te julgues muito superior, porque tem um nome, e porque assim as pessoas o chamam, seu futuro será este e algum dia, estaremos aqui, lado a lado, não importa, não importa se hoje és importante, porque um dia também o fui, não importa se tem amigos, por que um dia também os tive, não importa se hoje te chamam José, Saramago que seja, por que um dia também me chamaram Jesus.

pós-escrito - Chokmah


Ler Saramago é a oportunidade única de ler um Nobel sem tradução. Literalmente, já que o Escritor português não autoriza as alterações da grafia oficial do português luso para o oficial português brasileiro, que vigiam até pouco tempo e que serão unificadas após a carência do recém assinado acordo gramatical.

Já escrever como Saramago é uma experiência nova, mesmo para um assíduo leitor dele. É como dirigir um carro em alta velocidade, atento a todas as proibições, a todos os carros em sentido contrário, a todas as sinalizações de pare, de contramão, de lombada, e passá-las, para fazer seu próprio trajeto. É como – para parafrasear o Al Pacino, em Perfume de Mulher – dirigir uma Ferrari, sendo cego e sendo apenas guiado por alguém ao seu lado. Explico: é utilizar a palavra, utilizar a highway de um pensamento longo, de uma linha de raciocínio, até o seu cabo, passando reto por vírgulas, por ponto e vírgulas, por pontos finais, por travessões, por aspas, pelo senso comum da pontuação, pelas indicações de fluxo de consciência, pela normalidade de se indicar uma fala, um pensamento, uma ação. O resultado, para um leitor iniciante, é algo mais ou menos monstruoso. Insistir nesse monstruoso caminho leva a resultados sempre fascinantes, que são toda a obra do português. Com algumas páginas, já se está totalmente habituado ao modo de falar dos personagens, ao modo dos mesmos se locomoverem, agirem, ao fluxo de consciência, ao modo com que o autor vai nos inserindo ao seu mundo - um mundo comum, inominado, em que, invariavelmente, algo estranho, inexplicável vem a ocorrer.

Um elemento inexplicável em uma sociedade padrão e os desdobramentos decorridos deste, eis uma síntese da prolixa obra do autor. O elemento inexplicável é diverso: uma cegueira, uma explicação heterodoxa de uma verdade considerada universal, um continente que se desgarra, uma morte que se recusa a vir. O que se segue, os desdobramentos decorrentes desse elemento inexplicável somam-se ao caráter teratológico (créditos ao Guto) que caracterizei acima sua gramática e sua estrutura narrativa.

Aqui, abre-se espaço para “a verdade, contada por elementos não oficiais”, um dos temas recorrentes de José Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo não só é abominável por ser uma versão humanizada de um homem, a quem atribuímos ser filho do Homem. É abominável pelo fato de divergir de uma história contada, repetida até a exaustão até que se torne verdade incontroversa, ou o que o Direito Processual Civil costuma chamar de “fato notório”, com presunção iure et de iure. O novo tende a ser abominável por divergir do que conhecemos como verdade: ainda mais se o novo for uma versão narrada por um ateu sobre o acontecimento principal do Cristianismo.

Ressalte-se sobre as possíveis influências que deram origem ao Evangelho: a queda do muro de Berlim, o esfacelamento do comunismo são sempre ligadas ao escritor comunista e sua versão humanizada de Jesus Cristo. A versão que aqui se propõe não se altera muito: uma história de um certo Jesus, que cresceu e sucumbiu comercializando bolachas. O seguinte trecho:


“A globalização teve o mesmo efeito que se qualquer totalitarismo tivesse ocupado todo Portugal e assim dissesse, Olha, tuas bolachinhas já não são mais queridas por nós, que agora detemos o poder, e este sabor caramelo, a partir de então, será considerado subversivo ao sistema imposto. E tudo isso porque, pelas vias de facto ou de maneira sutil, o resultado foi o mesmo para Alcântara Machado, foi o de simplesmente a ordem vigente dizer, Não comercializes mais tuas bolachinhas porque não queremos”


retirei de uma entrevista a Saramago a alguma emissora de TV, em que informa que muitas vezes os efeitos da globalização são silenciosos, mas tão perversos quanto o de qualquer sonho mal de um ditador, seja latino americano, seja oriental, seja europeu.

A busca por Jesus por um ateu é um paradoxo, uma verdadeira aberração, tanto quanto a morte deixar de existir ou uma idade inteira ficar embebida de cegueira branca.

Já a vivência e a ausência foi o mote de “Todos os Nomes”, livro que, segundo conta a verdade dita como oficial, Saramago dedicou a um irmão morto. Este, autor e narrador, brinca com os conceitos de vida e morte, alterando-os da maneira que nos é possível alterar, o Assentamento no Registro Civil, uma inscrição errada no cemitério, coisas do tipo. Aqui se cria um outro propósito do livro, qual seja, a vida ou a ausência da vida de Jesus, (Do Alcantara Machado e não do Nazareno) a busca por informações de Jesus, das razões de sua morte, das inscrições que temos de fato – sua lápide e sua foto no cemitério – e de direito – o registro averbado no registro civil. Se Jesus existe ou não, se é humano ou não, não sabemos mais que nos contam os Evangelhos, os Registros, as inscrições em Bronze e as tantas monstruosidades escritas por José de Souza Saramago.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Gevurah

Soube, espantado, por meio de um sectário, pessoa virtuosa, da existência de uma Sociedade Secreta que, em nossos dias, revive a mítica sociedade que teve início com Christian Rosenkreuz e que atravessa os séculos pelas sombras[1].

Soube da existência da Sociedade há quase duas décadas – e, aparentemente, sobre a certeza desta data, não me deixo trair; apenas o espaço se transmuta na Sociedade; é diminuto e representativo do Universo. O tempo não. Este segue a mesma caótica ordem do mundo profano.
Nesta época, não sabia, mas já intuía que todas as Sociedades – não obstante sejam distintos seus propósitos – partem de preceitos comuns. O rol desses preceitos é extenso já que nada inventa, mas copia dos relacionamentos humanos do universo; por isso, sou incapaz de exauri-lo. No entanto, já fatigado de tanto rememorá-los, lembro mecanicamente algumas características, que me acompanham nestas últimas duas décadas: primeiro, a comparação da Iniciação na Sociedade com o nascimento. Segundo, o sentimento – explícito ou não – de fraternidade entre os sectários, necessário para criar um vínculo a mais, que os difere do mundo exterior. Terceiro, um propósito comum, muitas vezes de cunho altruístico, muitas vezes apenas egoístico.
Presenciei, vivenciei estes preceitos, quando na minha Iniciação. Desta, saí orgulhoso, um novo mundo a minha frente, um nome me foi dado[2], irmãos me cercavam em bajulações e interesses comuns.
O fim comum de minha Sociedade era árduo; honradas pessoas reunidas para alcançar o máximo de poder no mundo profano e concatená-lo para um objetivo de melhorar a existência do homem. Estas pessoas eram tão distintas quanto honradas; médicos, políticos, magistrados, engenheiros, geólogos; os mais influentes, os mais eficazes do mundo profano, juntos, discutindo as mesmas coisas.
Meu primeiro sentimento não foi nada altruísta, mas sim, pra minha vergonha, um tanto quanto egoístico. Saber que – por eu me destacar em minha profissão – eu fora chamado a participar de uma sociedade que reúne os melhores em cada área me deu uma euforia peculiar. Saber que eu encontraria com aquelas pessoas fora de nossas secretas reuniões e, todas as vezes que eu as encontrasse, um secreto e silencioso vínculo entre nós seria determinante me passou pela cabeça – e disso, pensar que eu poderia conseguir vantagens por ter um vínculo silencioso foi inevitável.
Mas logo tratei de expulsar estes pensamentos. Tal pessoa que pensa em si e em vantagens pode ser aquele – que fora gerado por seus pais e que era conhecido por outro nome – mas não o homem que foi batizado como Johann e que agora sou eu, plenamente, desde meu nascimento na Sociedade. Assim que destinei minha vida – minha profana e mundana vida – a satisfazer minha existência verdadeira, feita por mim, por meus irmãos e por sentimentos semelhantes e nobres, enchi-me de alegria, de força na vida e em Deus.
Outra importante característica que olvidei e que existe em todas as Sociedades é a existência de castas. Particularmente, a Sociedade preocupou-se com tantos cargos figurativos, com tantas nomenclaturas prolixas, que hoje já não as posso pensar com certa ironia. Guardião do templo, Mestre real do segredo, Antigo guardião do Secreto Baú, Vingador dos idos de Junho. Os nomes todos tinham correlação com fatos pretéritos e que se ligavam de algum modo a histórica fraternidade Rosa-Cruz. Quando adentrei na Sociedade, embora fosse vexatório, não pude deixar de observar (e invejar) os mais velhos – os que detinham as posições mais influentes, os que tinham mais poder de convencimento. É importante ressalvar que a vida profana, embora necessária para selecionar os membros, não mais influenciava em nada na Sociedade. A importância de um membro se mede exclusivamente pelos seus méritos internos e isso apenas reforça o mito que a Iniciação se equipara a um nascimento, já que não existe nada anterior a este. Nos anos que permaneci na Sociedade, não raras as vezes vi importantes pessoas do mundo profano terem suas idéias preteridas a de outras pessoas menos notáveis [3]. Por isso, invejava as lideranças, as pessoas poderosas da Sociedade, as que tinham cargos com nomes extensos e significados - ao menos aparentemente – muito profundos. Invejava-as e queria imitá-las, seus trejeitos, seus outrossins, suas pequenas particularidades da voz, do tom, das mãos enquanto falavam; isso tudo por que elas significam o poder de uma sociedade de poderosos, significam ser o destaque entre os destaques, todos aqueles homens, com fins e pensamentos tão nobres.
Do pensamento que existe castas entre os sectários, um outro pensamento se torna inevitável, imperioso: o de que existe, dentre as castas, uma que comandará todas as outras. Este, que detém o símbolo máximo do poder, encontra seus limites apenas em um grupo de três ou quatro decanos, velhos ilustres e figurativos membros da Sociedade. Estes já compuseram o quadro há muitos anos e agora apenas são membros alegóricos – ou ocultos, como queiram. Não participam das votações, não participam das decisões efetivamente. Mas se sentam ao lado da cadeira do Guia máximo – que é mais alta, para sempre rememorar a existência da casta – e são efetivamente os responsáveis pela decisão final, no caso de dúvidas e de injustiças. São, dentro da Sociedade, o Judiciário, para sanar os problemas supervenientes e o legislativo, para ditar novas regras, que devem ser cumpridas compulsoriamente.
E, para chegar ao cargo máximo, o cargo de Guia, particularmente, vivenciei uma importante mudança na Sociedade e que é necessária para a exposição do propósito destas linhas.
No começo, apenas existia a tradição. Os mais novos reconheciam nos mais velhos uma vivência maior, necessária para a direção da Sociedade. E, nos mais velhos, naqueles que participavam da Sociedade por mais tempo, os que se destacavam invariavelmente se tornavam guias. Os guias eram reconhecidos, dentre os demais, simplesmente. O sufrágio existia e era tácito. A simples aquiescência era determinante para escolher aqueles que teriam o poder de decisão.
No entanto, há uma década mais ou menos, um acordo entre lideranças foi rompido; para evitar um confronto direto, uma das lideranças abriu mão para outra, com a condição de ser a próxima a ser Guia. Tal fato foi chancelado pelos decanos e se tornou norma tácita na Sociedade, como comumente ocorria. Foi então que o Guia escolhido, quando de sua saída, apoiado dos decanos, preteriu a liderança que abrira mão, e apoiou outro homem. Pela primeira vez, houve a formação de distintas chapas pleiteando um cargo e a conseqüente votação para o cargo máximo na Sociedade. Os decanos, sorumbáticos e barbudos, reuniram-se e, em sua vasta sapiência, decidiram não poder negar a existência de uma forma tão democrática de eleger os guias, como o é a votação.
A votação de fato ocorreu e os votos apenas demonstraram o que já ocorreria sem a votação: a liderança, apoiada pelos decanos e pelo então Guia foi eleita; o sectário preterido uma vez foi preterido novamente, e o acordo verbal que antes possuía para ser o Guia agora não valia absolutamente nada. Todos os que votaram no guia eleito foram recompensados com cargos e distinções importantes. Depois, descobriu-se que este acontecimento não foi uma recompensa pela votação – mas sim o pagamento de uma promessa e que a entrega de cargos era a contraprestação superveniente. O líder preterido e os que votaram nele foram cassados e tiveram sua honra deturpada. Eu fui essa liderança preterida, mas juro que senti mais por meus companheiros do que por mim mesmo.
Esta talvez seja a informação central destas desventuradas linhas: não o escrevo vingativamente, não açoito as lideranças eleitas e a sucessiva linhagem que desta se originou, não menosprezo aqueles que foram eleitos pela maioria. Apenas quero que fique registrado que este foi o momento que, na Sociedade, nasceu ou foi descoberta uma característica que é inata no homem e que é inseparável deste, mesmo em uma ideal Sociedade de irmãos: a tendência à divisão, a união por interesses, a afinidade por grupos, a busca pelo poder, por mais que se diga ou propale o contrário. A primeira votação teve conseqüências consideradas pelos idealistas – os que pregam os ideais plenos da Sociedade, os que pregam a idiossincrática idéia da fraternidade – como catastróficas. Eu, embora perdedor, sempre considerei essa votação como denunciadora da nossa condição de homens, mesmo vivendo nesta utópica Sociedade. Após a votação, dois grandes grupos foram formados. O daqueles que detinham o poder, os que eram comandados pelo Guia da Sociedade, e nós, que éramos guiados por mim, a liderança preterida, o perdedor da votação. Pouco a pouco, todas as nossas ações ganharam tonalidades subversivas à Sociedade e todas as nossas falas lentamente se tornaram vermelhas, inflamadas, conspiradoras. Isso por que o grupo inimigo se confundia com a própria Sociedade, já que a comandava, com a aquiescência dos decanos. Pouco a pouco, por sermos a oposição, tornamo-nos rebeldes, personas non grata, subversivos ao sistema. As eleições seguintes apenas confirmaram o destino que nos foi imposto: a humilhante derrota, a honra lastimada, a condição de sermos os errados, os rebeldes. Assimilamos mais uma vez a derrota e tomamos como nossa a alcunha jocosa que nos deram. Diziam-nos, jocosamente, que éramos revolucionários. Tornamo-nos por opção o grupo revolucionário – não por que tínhamos este ideal, mas apenas por ser pilhérica essa nomenclatura que nos fora dada. Brincávamos de acender charutos cubanos em reuniões próprias, brincávamos de ser a esquerda ululante, brincávamos com o comunismo, com o jacobinismo, entramos no espírito sectário da Sociedade; enfim, criamos uma sociedade dentro da Sociedade, tão alegórica e figurativa como esta; uma sociedade criada apenas pela afinidade, dentro da Sociedade que se propusera a albergar os nobres do mundo profano. Nas próximas eleições, afastei-me do pleito. Decidi que eu seria mais eficiente apenas organizando a estratégia de nosso grupo. Como eles, comprei votos, vendi ideais, propalei nossa superioridade; tudo pela busca ao poder, o nosso fim, o fim de todos nós. Mais uma vez fomos os perdedores. No maniqueísmo simplório que fazem da vida – e da Sociedade – já estávamos marcados: fomos eleitos o mal, o câncer a ser combatido, por que o grupo dominante só pode ser sinônimo do bem. Todos os novos iniciados eram alertados da parte podre da Sociedade, daqueles que deveriam ser isolados, até o esquecimento. Nunca me incomodei em ser considerado a liderança dos rebeldes; apenas me machuca a falta de inteligência dos meus inimigos, que não percebem que ser bom não é causa, mas sim a conseqüência de ser a ordem do sistema, de ser a direita. Fosse, algum incerto dia, nosso grupo a ordem, trataria eu também de elegê-los os subversivos, os que devem ser combatidos e, subseqüentemente, esquecidos, nesse errado maniqueísmo que nos governa, mesmo sabendo que apenas tenho eu interesses diversos dos deles.
Nesta época, na Sociedade, já eram todas as palavras minhas condenadas, antes de eu as dizer. Julgavam-me meu próprio ser e não minhas atitudes; condenavam-me a existência e não minhas possíveis penalidades. Por isso, decidi me isolar do grupo; pensei por noites insones e tal pensamento dilacerou meu espírito, dilacerou o que restara de Johann em mim. Seria, em meu triste ocaso, considerado um perdedor, um suicida. Mandaria uma carta e, solenemente, pediria meu afastamento. Todos os meus inimigos, todas as pessoas do outro grupo ririam de mim. Os meus, os que viam em mim a liderança natural, os que enxergavam em minhas palavras verdades (que eram as verdades apenas de nosso grupo), decepcionar-se-iam. Eu, aquele pelo qual eles tanto haviam lutado durante anos, de uma hora para outra, abandona a Sociedade, abandona os seus. Tornar-me-ia uma piada para ou outros e um fraco para os meus. Mas, mesmo assim, decidi pedir o afastamento. Eu já não ajudava mais em nada. Eu era subversivo, independente do que fizesse; e todos que andassem comigo, todos que me seguissem, já levariam o crivo de subversivos. Decidi que permanecer denotaria apenas um capricho, enquanto afastar seria determinante para o sucesso dos meus aliados.
Nunca consegui sair, por que nunca permitiram que minha memória fosse esquecida. Os fatos subseqüentes ao meu pedido formal de esquecimento são recentes e tão dolorosos quanto as derrotas nas urnas, que eram motivadas por compra de votos e pela crença de que éramos perturbadores da ordem. Sectários mais recentes, sectários supervenientes a minha saída continuaram com os ideais de nosso grupo, continuaram tomando para si jocosamente a idéia de que eram jacobinos. Neste momento, mesmo com minha ausência, todos esses novos membros foram taxados e marcados pela minha negra influência. Estes não se deixaram abater e pouco a pouco se tornaram maioria entre os de nova geração – os que representavam o futuro da Sociedade. Tudo descobri curioso e divertido. Longe, afastado, eu me tornara mais influente e importante do que nas prolixas reuniões, nos longos discursos que eu me propusera a fazer nas reuniões. Os dirigentes logo trataram de ceifar o mal, antes que se proliferasse. Primeiro, um grupo de influentes pessoas na Sociedade foi conversar com os iniciados rebeldes, tentando dissuadi-los daqueles maléficos ideais. Depois, após o fracasso da missão, um importante decano foi responsável por reunir os novos; disse o decano que deviam os iniciados largar das más influencias ou seu futuro estaria seriamente prejudicado no grupo; se eles não mudassem de idéia, nunca poderiam aspirar os altos cargos da Sociedade. O decano, mesmo difamando minha memória, não os dissuadiu e eles foram marcados com o sinal do mal, com a pecha que um dia também me foi dada. Para os inimigos, morto, valho mais do que vivo. Tornei-me um Che Guevara e meu fantasma todas as noites assusta os centenários decanos que comandam a Sociedade. Quando soube da ingerência do decano nos iniciados, senti primeiramente pena destes. Em absoluto, não gostaria de ver minha mácula tomar conta de ninguém; não queria que eles tomassem para si um fardo que era meu, e que era desnecessário. Depois de um pouco pensar, senti raiva e desprezo pelo decano. Que atitude reprovável e covarde para um sapiente consultor de uma Sociedade dos mais justos e nobres homens de todo o mundo. Que gesto é esse, senão o que denuncia que os ideais há muito não existem, senão formalmente. Como alguém pode em alto e bom som contestar minha honra em minha ausência?
Aos que imaginam ser estas prolixas e ressentidas linhas de um perdedor, justifico-as, com a própria razão do universo. Vale menos a minha derrota do que a posição que ela ocupa no universo. Infelizmente, incluo-me no rol de inimigos, daqueles que são considerados subversivos ao sistema vigente e, por isso, necessitam de punição, pelo simples fato de existirem. Não sou o único e nem o primeiro. Isso porque, em diferentes graus, todas as Sociedades elegeram seus inimigos, de modo que eu apenas faço parte de um infausto e imemorial rol, tão antigo quanto o homem, um rol que poderia ter sido inaugurado por Caim e que contém tantos diversos nomes como Shylock, Gengis Khan, Hannibal Lecter e o goleiro Barbosa. Rousseau, ainda no incipiente Estado, pregou que os malfeitores do Estado deixam de ser cidadãos e, por isso, são considerados inimigos de Guerra. A trilha de pensamento, para legitimar a ordem Estatal teve vozes em Hobbes, Fitche e Kant e, muitas vezes, ocorre de forma velada, encoberta por ideologias cientificas.
Os exemplos são tão vastos quanto a quantidade de relações humanas da Terra. A legitimação nazista da supremacia ariana (e a conseqüente pecha de inimigos aos não-arianos) por uma leitura desregrada de Nietzsche e, quiçá, por um manifesto de Sião apócrifo; a leitura de Marx, nos pontos interessantes ao Socialismo e a refutação do mesmo Marx, nos pontos não interessantes ao Socialismo. Em todos os casos, a premissa é a mesma. O poder se funda em uma ideologia, nos pontos que a interessar; o próximo passo é a eleição dos inimigos, aqueles que são contrários ao sistema vigente, que devem ser destruídos física e moralmente.
Nos dias atuais, a tendência de eleição do inimigo certamente não se contenta em eleger inimigos do Estado, como os da época de Rousseau, ou inimigos do Socialismo, como os da época de Stalin. O conceito de inimigo, durante a História, é simples: estes apenas refletem os medos da classe social vigente, como em muitos contos de Borges o vilão antagonista apenas reflete o medo do temeroso e mesquinho protagonista (e invariavelmente para Deus os duplos são a mesma pessoa) como em Os Teólogos e A Morte e a Bússola.
O direito penal do Inimigo, mostrada por Jacobs, mostra a tendência de eleição do inimigo de nossos dias. Funda-se no terrorismo e em fatos como o 11 de Setembro e o 11 de Maio; sua solução, como o de todas as outras épocas, é a de minar o inimigo de suas prerrogativas de direito e puni-lo, pela simples existência. Ao cidadão, pune-se pelos seus atos. Aos inimigos, pune-se apenas por sua periculosidade – ou seja, pune-se apenas pelo fato de serem eleitos como inimigos.
Achei necessário refutar Jacobs, e já escrevi que o poder instrumentaliza as ideologias, utilizando o que lhe é necessário e descartando o resto e, exemplifiquei, mostrando que o Autoritarismo pegou de Hegel apenas o que lhe legitimasse e descartou a parte liberal, como os racistas apenas pegaram do evolucionismo ortodoxas premissas e não as devidas prudências doutrinadas por seus autores. Quanto à despersonalização do individuo e o legado de inimigo, como sanção imposta a priori, lembrei apenas o óbvio: a falta de legitimidade para a punição dos inimigos. Como exemplo, citei os terríveis e irreparáveis efeitos que esse pretenso Direito penal pode conceder a tantos ditadores contemporâneos, como os que se vê atualmente na nossa pobre América Latina.
O conceito de inimigo não é formado com a ideologia; é, ao contrário, um conceito a posteriori, que vem depois de formada a classe dirigente, que apenas pega o que lhe interessa das idéias. Ainda sobre a formação ideológica a classificação que quem não é daninho e quem é inimigo, já tive a oportunidade de escrever que “essa característica da manipulação ideológica tem um duplo efeito: a) gera em alguns a impressão superficial – e infantil – de que os criadores de cada ideologia foram ou são gênios do mal, que vivem buscando o modo de proporcionar argumentos de justificação do poder. Esse infantilismo analítico leva a afirmações absurdas de que Kant era um obsessivo, Hegel um delirante, Freud um traumatizado, a religião o ópio dos povos, etc; b) por outro lado, se originam intermináveis disputas acerca do que quis verdadeiramente dizer cada autor, corrente ou personagem, sobre a tese certa de que geralmente não disse o que o poder pretende por em seus lábios. Estas discussões são as que provocam inflamados manifestos demonstrativos que Nietzsche não disse o que Hitler entendeu, que Marx não disse o que Stalin o fez dizer etc.”
O conceito de inimigo vem após a eleição do que o poder dirigente pretende combater e após descartar toda ideologia que não a legitime no poder. Com isso, não quero justificar os atentados e os homens-bomba do islã; apenas quero refutar a tendência ideológica que os “inimigos” devem ser combatidos, apenas por existirem, mas sim pelos atos que praticarem. Isso por que, por algum acaso fosse o mundo dominado por Aiatolás fundamentalistas, não haveria homens-bomba (pelo menos, não os mandados pelos Aiatolás) e, certamente, os inimigos seriam outros, como por exemplo, os infiéis do ocidente.
Não justifico determinada ideologia ou detrato outra; não é minha intenção mostrar que o Ocidente é melhor ou que o futuro reside nos escritos do mandarim, como também não pretendo provar que eu estava certo e que o outro grupo da Sociedade se equivocou; as ideologias são tão flexíveis quanto à equidade e não passam de pontos de vista, muitas vezes deturpados, muitas vezes mal interpretados, propositalmente. Mas nesse ponto, uma conclusão se mostra inevitável: eu sou tão vil, tão torpe quanto os homens bomba que atacaram as torres gêmeas no fatídico 11 de setembro; sou tão baixo quanto todos os nazistas; tão ortodoxo, quanto os companheiros de Stalin. Isso por que a História e o Direito não são feitos por mim, mas sim pelos vencedores. Não é saber que determina o poder, mas justamente o contrário: é o poder que condiciona o saber. Mais, é o poder que determina a razão e a injustiça, o bom e o mal, a verdade e a mentira. A história foi contada e, na Sociedade, fui eleito o mal, muito embora essa sociedade seja apenas figurativa, seja todas as Sociedades.
Da mesma maneira que não justifiquei minha torpeza, mas, sim, apenas constatei um fato que existirá independente da época, independente do nome que lhe for dado, não queiram justificar – seja o perdedor que for – quaisquer derrotas com essas minhas linhas, uma vez que são apenas linhas, são apenas parte também de uma ideologia. Apenas aceitem que a história não é feita por nós e para nós, perdedores, e regozijem-se com a singularidade e a beleza inexata da pecha de inimigo e de perdedores que nos é dada. Todas as linhas escritas não foram assinadas pelo meu nome dado à pia, e pelo qual todos me conhecem, Eugênio Raul Zaffaroni; pelo contrário, foram escritas pela pessoa que teve na Iniciação um nascimento, que combateu e que perdeu, e que, por isso, foi considerado perigoso inimigo, um personagem denominado Johann.
[1] Alguns erros são propositais, outros não. Sei que cometo uma tautologia, já que pessoa virtuosa e membro da Sociedade são termos sinônimos. No entanto, já que os que lerão esse documento são, em sua maioria, profanos, justifico essa incoerência apenas para citar a credibilidade da minha fonte e o espanto que esta me causou – a existência de um secreto mundo que me foi confessado por um (ainda inominado) douto juiz de Direito, membro desta pretensiosa Sociedade.
[2] É preceito da Sociedade também, como conseqüência de uma nova, de uma purificada vida vindoura, a existência de um novo nome. Todos que adentram na Sociedade recebem um nome, que lhes lembra sempre a condição de serem superiores, de serem diferentes do mundo profano e, principalmente, de terem uma ligação a mais com os irmãos da Sociedade; pois apenas estes conhecem teu secreto nome; apenas estes são capazes de te chamar pelo seu nome verdadeiro.
[3] No ano de 1999, o então prefeito foi iniciado. No começo, sofreu as mesmas restrições que todos os iniciados são submetidos: um período de testes, para medir a confiança e a perspicácia do iniciado. Ocorre que o chefe do Executivo local não suportou não ser a voz preponderante do novo meio e pediu seu afastamento, um acontecimento tão vexatório para os membros quanto um suicídio. Desde então, ficou alcunhado jocosamente como “rei morto”.

pós-escrito - Gevurah


Nenhuma observação relevante. Um conto simples sobre a aplicação do Direito Penal do Inimigo, explicada de forma espetacular pelo argentino Eugenio Raul Zaffaroni, Tal teoria explica o procedimento de transformação do opoente em inimigo e sua posterior condenação, pelo simples fato de ser tachado como inimigo. O autor explica sua teoria à luz de importantes desdobramentos no mundo como o 11 de Setembro e o 11 de Março espanhol.
No entanto, o Direito penal do Inimigo não é aplicado apenas na Sociedade global em que vivemos, com todas as suas complexas peculiaridades. É, também, aplicável a qualquer sociedade, a qualquer grupo de convivência humana – simplesmente pelo fato de todo grupo se reunir de acordo com seus interesses e todo grupo apresentar castas e pressupostos de poder. Imaginei, portanto, o autor argentino buscando a inspiração para sua explicação não pelo ocorrido nos jornais, na TV, nos noticiários, nas tantas mortes na região de Gaza. Mas, sim, supostamente pelo que tenha vivido, em um grupo seu – uma experiência personalíssima. Imaginei, portanto, uma Sociedade que, frise-se, pode ser qualquer sociedade. O nome e as características não são importantes no conto, exceto uma – a existência de castas. Disto, naturalmente deriva a busca pelo poder e a divisão de acordo com interesses. Desnecessário repetir – uma vez que isso já foi dito – que, se há poder, se há divisão de interesses, um dos grupos necessariamente sairá perdedor e outro necessariamente vencedor. Obviamente, para explicar o direito penal do inimigo, o protagonista só poderia estar inserido no grupo perdedor, no grupo alcunhado de inimigo e que sofre as sanções decorrentes disso. Mas nada pessoal em mostrar Zaffaroni como perdedor de uma imaginária sociedade secreta.
Não tenho autoridade alguma para me alongar em Direito Penal. Apesar de ser aluno do “Papa do Direito Penal Brasileiro” Doutor Luis Régis Prado, sempre fui medíocre nessa disciplina. Mas o Direito Penal do Inimigo é uma exceção, porque não é acadêmico, nem científico demais; pelo contrário, consegue explicar muitos acontecimento importantes do Mundo, bem como muitos acontecimentos diários de relações inter-pessoas. E depois de ler essa teoria, a argentina não é apenas de Borges, Lugones, Bioy Casares e Cortázar. É também a Argentina do Grande Eugenio Raul Zaffaroni.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Chesed

Queria escrever - longe de invencionices e odisséias - queria traçar, forma clara e concisa, um pequeno entendimento, um ensaio do sertão, uma ética cabocla - carta-ofício, sem qualquer literatura. Mas meu trabalho se apequena, afugenta-se. Detenho-me. Impossível, se não usar o vocabulário do Sertão, o vocabulário próprio, que aprendi com seo Manuelzão e com os outros boiadeiros, veredas afora, o vocabulário verdadeiro, que, por si só, mostra-me as verdades de minhas linhas. Um ensaio, uma ética, o maniqueísmo caboclo, a luta do bem e do mal, o Mal, o Muitos-nomes, as coisas todas que norteiam vidas e livros, gerais afora.
No inicio, e ainda cá não existe nenhuma literatura, Graciliano, eu e Zé Olympio aprazíamos de nada fazer, uma tarde quente na própria Livraria José Olympio Editora, o aguardo de um figurão americano, talvez interessado em Angústia. Creio que o incidente se deu após a minha volta, logo que conheci Graciliano, quando ele me confessou que em um concurso preteriu meu livro, concedendo a honraria à Maria Perigosa. Enquanto conversávamos, refestelei-me no sofá e peguei o primeiro livro que minhas mãos alcançaram. Fatigado, detive-me no título: A Viva Culinária do Brasil. Meu companheiro escarniou, leviano, sobre minha literatura; respondi-lhe que, em tudo que haja escrito no mundo, não devemos duvidar que exista uma vida. O resignado Graça me foi sincero. “Bonito. Meloso. De quem é?”. “Shakespeare” retruquei, creditando a apócrifa máxima.
A Viva Culinária, porém, só se atentava com estatísticas. O autor, Sebastian Louchet, célebre ignoto francês, classificava os melhores restaurantes nacionais. Julguei uma literatura inútil até visualizar, perplexo, um fato. Omiti o espanto ao meu amigo, como o omito agora; meus leitores, creio, compreenderão minha negligência apenas nas ultimas linhas desta desditosa carta.
Tempos depois, revivi o assunto Louchet com um amigo, Seo Manuelzão, caboclo velho e vivido, sábio oráculo das vidas das Gerais. Reescrevo, pois “a Lenda do Galego Francês”, tal qual soube de sua literatura verdadeira, oral, e também pelo que pesquisei - glossários, almanaques - a curiosa história do francês. Lembro-me da pergunta, se já ouvira falar em um nome assim...
Ij. Se conheço? Se só. Homem bom, teve as suas. Passou por seus bocados, o provar, o dia correto em que há de a casa cair, dia em que se deve estar pronto, solerte, pé em prumo, mão em massa e pensamento forte e único, pra saber se sair. Homem bom, todos os homens ruins não são de todo maldades, tem sua poucada de santidade. Nem Joãozinho Bem Bem, nem Alaripe, nem Salustio Rasga-em-baixo, nem Efígio Sete-frexa, nem Maranhãozão, nem os-do-Hermógenes, nem aquele que batizaram o Urutu-Branco, o Pássaro negro, nem Teofrazio das Gerais, deflorador de virgens e de quermesses. Mire e veja: todo valentão não é de todo valente, por mais que seus ares e bofes queiram dizer o contrário, que ache com os olhos que tem mundo em seus pés.
Esse tal, esse que pergunta, sujeito estranja, galego, muitos foram os apôdos que teve, cá nessas bandas. Todos o conheciam: Bastião Luxé, Tião-das-frô, ou ainda Tãozinseucú, por glosa, por seu tique incessante de fazer bico e pose e falar anasalado a última vogal, coisa mesmo de galego.

Insisti na pergunta. Conhecia? Como assim? , respondeu. Conhece-se vivente do Sertão pelo cheiro, pelo visto. Homem do Sertão? Como assim? Expliquei ou indaguei que era de França, que era de fora. Homem do Sertão, pois sim. Ara. Homem do sertão se dá em todo lugar, que nem pé-de-palma. É ração de bovino. Assuntarei:
O mundo, seo moço, é fôrma e fórmas: no moldar, no fazer, rezézinhas iguais se existindo, se nascendo, aqui e acolá, onde tudo é sertão; e novilhos, novos de não se entender, mas sim de se existir, o bué igualmente, o mundo novamente se principiando. E no todo, no molde, alguns, homens são do sertão, sim senhor: aqui, no Buriti, Capão Manso, nas Gerais, na beira do rio São Marcos, Pinhém, Veredas Mortas, no Jequitinhonha, no sul, de onde sopra vento e traz chuva, do mais norte, nos sertões da Bahia, de Pernambuco, de mais aléns, das estranjas, rico ou pobre, nobre ou não. Porque, para ser, identidade, do Sertão, tem de existir alma, cois’dentro, razão de ser, de se saber que homem do sertão e sertanejo são coisas próximas, maximé, e, nãostante, toda diferente, diversa. Homem assim tem o sertão dentro, conhece as veredas da alma, os solilóquios. As reticências. O intransitivo de se existir, um tal já não o disse, célebres palavras, a questão de ser, o sertão inteiriço? Sertão vem de dentro, seo moço, vem rasgante, rascrava em pele, em músculos, no respirar, no modo de se ver as coisas. Sertão é a solidão, e solidão se dá sem avisar, sem ter fronteiras, sem distinguir jagunço e senhor, mandante e mandatário. Periculosidades. Viver são essas coisas. O bom combate, os capões da alma.
Não creia? Não glose. Verdades há de outras bandas, também. Pão e pães, é questão de opiniães. O fato, o correto, é que Luxé glosou. Teve das suas. Tida e, sim, meresofrida. Vida é o azo, vida só é vida depois da tempestade, do ser e do não ser, a sabiencia. Responsório de Sapo-Rei que coaxa grosseirão: sofri, senti, vivi. Experiências. Não é isso a vida?

Disse-me essas, outras coisas. Dos glossários, tirei que Jovem, na França, Louchet se fez, entre outros de seu meio; uns revolucionários sem causa; outros burgueses que nada enxergavam a não ser a ponta de seus narizes. E das barricadas e dos cafés parisienses, a única cicatriz perpetuada de sua juventude foi a paixão por comida. Passou inteiriço por entre o ser e o não, por entre o apocalipticamente correto e a sonolexistência; o galego abocanhou o passado e abdicou dos planos paternos, que o moldaram para o pensamento ou a política; ganhou o mundo, com um apetite de não caber em si, talvez diria, se isso fosse um conto.
E assim entendi que Louchet, já o maior crítico gastronômico do mundo, criou uma estátua de si próprio e se acreditou um mito, altivo, crescido, imponente, ao lado dos bustos de outros de seu sangue, de jacobinos, escritores, pensadores, o rol antigo e orgulhoso galício.
Talvez por isso aceitou vir ao Brasil, a convite de uma confeitaria carioca. Com a passagem nas mãos, olhou-se no espelho; refletiu-se beato, já ensinando na capital, Buenos Aires, para os negros e índios daqui, tudo da arte da degustação. Imagino-me descrevendo sua vida em um conto qualquer: quase chorou de sua imensa bondade.
Hegel doutrinou a verdade conhecida como fruto de uma tese e sua antítese. Marx narrou a parábola do homem humilhado à condição de escravo que, pela dialética, condiciona as ações de seu superior, tornando-se senhor dele. Além dessa vã filosofia, todo sertanejo acredita no Maniqueísmo; a luta entre o Bem e o Mal. Na mitologia sertaneja, os pormenores e prelúdios se transformam em epopéias vividas pelos homens nas veredas do Bem e do Mal, incessantes.
Assim, conta-se que foi a vida de Louchet. Neste continente tropical, foi leiloado por espertalhões e interesseiros, por restaurantes e políticos e convidado a conhecer do sul ao nordeste, os quatro cantos do país. Dentre as paradas, dentre as tantas aporrinhações, as fotos, os prefeitos, as visitas aos restaurantes, já arrependido, já combalido do sertão, dos trópicos, do incessante sol, das muriçocas, do tempero brabo, das particularidades todas daqui, nas Gerais, foi obrigado a conhecer uma trilha inóspita e inesperada, uma trilha antiga de jagunços, por meio dos Buritis, das capoeiras, dos bambuzais, perto do Jequitinhonha. Empapado do escaldante sol e picado por negros e famintos borrachudos, foi parado por um velho negro, dono de uma vendinha de comidas, abastecedor de tropas, de cãs jagunços e moleques aventureiros, de bóias-frias, de todos os que precisam sobreviver nas Gerais; o negro, humildoso, ofereceu o maior prato que já fizera. O francês se sentiu insultado com o prato intransitivo; herege, jogou a comida à mãe terra e maldisse impropérios que todos dessa Babilônia compreenderam.
Então, aos olhos de todos, o velho negro baixou seus olhos de cão cansado e lamentou porque, para ele, sua cozinha era forma de sobrevivência e não arquétipo de arte.
Oxê, môço. Esse tal, Luxé, o galego, se desgostou todo, tresmudado; o sol, o sal, o sertão sem fim, tudo intenso, fazendo efeito, queimando pensamento, vertendo idéia, metamorfoses. Lhe falo mais é do Sertão. Porque Sertão é o criminal, as penas todas. Sertão é onde tem de ter a dura nuca e mão quadrada. E vivente do Sertão é no Sertão que só se encontra, o dentro pulsando, a raiva, o dêscontrole, mão em prumo, cuca em riste, a queimação... e diante de todos, diante do preto velho, que lhe ofereceu tudo o que tinha, a comida justa de Deus, o galego se possuiu. Equiparou-se. Perequitava. E disse coisas feias em sua língua, tão arrastadas, tão enraivadas, que todos fizeram o nomodopadrespirisantamem, com medo que diante deles estivesse o... bom, você sabe... o Cujo, o Oculto, o Não-sei-que-Diga, o Que-não-Ri, o Galhardo, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Coisa-Ruim, o Coxo, o Das-trevas, o Tisnado, o Pé-Preto, o Xu, o Arrenegado... nomes são tantos, o medo o mesmo, o medo presente - francês elevado à entidade.. vixe. E mais medo ainda tiveram quando Luxé deu com o comida no chão, blasfematório, feito comer carne em sexta-feira da paixão. Até que ele se foi, mata à dentro, ainda abocabaque, maldizendo tudo que encontrasse em sua frente. Mire e veja: Coisas que só podia acontecer aqui. Sertão, seo moço, é que nem amor para-com prima: uma vez existente, é câncer que não larga, perfura no fundo do coração, crava em riba d’alma, mesmo. É coisa que vivente tem, esconde, mas, hein, hein, não se pode esquecer por jamais. Mas é no sertão que tem o bom o mau. O Mau existe, mau e mal hão, dent’ da gente, mesmo em nobre empanado e estranja ou em preto humilde de cá. E passado o medo, restou o escárnio, o preto véio com olhos de cão cansado, o prato ao chão, os sorrisos de soslaio dos fotógrafos, dos figurões todos de Belorizonte. E o preto – a quem um já o alcunhou de vagabundo, cachaceiro e macumbeiro – o preto, sim senhor, ergueu o olho, e não era mais olho de cão pastor, mas sim de gato gorá, vermeio como o fogo, como dentro de melancia madura. Não creia? O sertão são mistérios... dizem... que logo em-seguida rancou de-dentro um boneco, pequeno, medorrento, e tornou a dizer, voz gutural, abobada: Estou espetando estranja, estou ensinando a estranja, estou acabando com vida de estranja. Praga forte, de-se pegar, dizem que maior que cerimônia de corpo-fechado.
Mas? Mais! Não digo. Não gloso. Somente posso, no simples, dizer: eis que entra em cena o poder contrário da dialética: o Mal do maniqueísmo matuto, o inevitável dia em que a casa há de cair e, pelo qual, seremos provados. A antítese de Hegel que, pela negação, prova a certeza final.
Quando Louchet e seu guia se embrenharam na mata, o inesperado da História – ou o inevitável da Estória – acontece. O guia suou frio, cambaleante. Louchet o vê tombar, moribundo, entre uns frondosos jequitibás. Um primeiro pensamento emergiu no francês. “Algum inseto picou mortalmente o guia”.
Inserto o incerto, do estático ao extático, seu único mecanismo de defesa foi correr. E no pânico, acabrunhou-se, mata adentro. Parou um bom tempo depois, ao tropeçar e se afundar em um manguezal.
Nomes estranhos. O guia foi homem que tombou, sem aviso, sem úi sequer, aviso de bala, de problema de coração. Tombou, como tantos outros. Maleita? A Sazonal? Nomes feios, que aqui ouriçam crente, só de falar. A coisa ruim. O Mal. Mas, essa dá aviso, o suor, a tremedeira, o delírio. Não era. Picada de cobra, de aranha, qualquer bicho venenoso? Urutu raivosa, coisa de honra? Plausível. Provável? Não senhor, sem ver, sem se ouvir, sem sinal algum. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim. Cruzeira que confundiu preá, homem ao chão, estranja sem chão... e o tal, Luxé, só fez correr, como cego, porque sua visão nada via, mundo novo, um Sertão todo por conhecer: e passou por meio de jequitibás-rosa, por arbustos, arvores, cheios de espinhos, cortantes, a mamica de porca ,também espinhenta, por sangue de andrade, deixa-falar, jacarés-novos, de pequenas folhas e de casca eriçada em tarjas, cristas listéis e caneluras. Correu: entre as cores, as imbaúbas, grandes e esguias, tropeçou pelos filetes caídos de cipó-bracadeira. Afundou-se no húmus, na terra fofa e cheirosa, no resto de folhas verdes, vermelhas, convexas, estreladas, enormes ou nem-tanto. Molhou-se nos corgos, águas cristalinas, o remanso d’alma, o fino caldo que deságua caudaloso mais longe e mais além vira mar, que vai pra sua terra. Embrenhou-se, jagunço de primeira, o coração selvagem da mata.
Respirou. Profusamente, tentou acalmar-se, lembrar de sua genialidade e de seu rosto ilustrando os futuros livros de História. No eterno momento que antecede a morte, Louchet revisitou a sua vida: inflamados discursos, muita comida, condecorações e sua estatua, imortal.
Mas de nada adianta ser uma estátua imortal se está prestes a morrer na lama, sem espectadores e perdão. Assim, dizem, tantas vozes diferentes, Louchet chorou o pranto dos derrotados. Chorou a anunciação de seu fim e a farsa que toda a sua vida se transformara, em um único momento. Então rezou com palavras suas, inventadas, para alguma religião distante. Parou, humilhado, por que implorava por um Deus que desconhecia; e afrouxou seus músculos e deixou o corpo aos vacilos do destino de todos nós – a morte.
Então já que não podia lutar, ao menos, poderia pedir desculpas. E assim rogou; perdão a tudo e todos; perdão por sua vida, como nunca havia feito. E, lentamente, transformou toda a piedade em um sentimento vivo de misericórdia; mal sabia que, enquanto pedia perdão ao mundo, passaria fome e sede, mas conseguiria algo mais difícil - o perdão de si próprio.
Após as lamúrias, reuniu coragem, as forças restantes e se levantou. No inicio da nova jornada, caminhou cauteloso, tentando dominar o terror. Depois, decidiu que deveria articular palavras para não enlouquecer. Abafou o medo goela abaixo e cantou baixinho as cantigas folclóricas francesas e, aos brados, os versos da Marselhesa. Magro, coberto de misericórdia e sujeira, Louchet iniciou uma nova aprendizagem. Aprendeu a achar água nos cipós, a pisar no solo encharcado e os frutos que poderia comer. Feito Jesus em via crucis, desabou nas varias vezes que o alimento faltou ou que descobriu andar sem rumo. Agoniado, nas horas de desespero, clamava à floresta que enviasse logo a morte. Mas vencido o penitente rancor, exaurido o corpo e a alma, levantava e seguia adiante.
Seo Manuelzão narrou estas e outras desventuras do inferno que o francês viveu na mata. E apenas quando a revolução fosse completa, o Grande Literato colocaria a clareira de volta em seu norte. Retornava ele ao local que tinha entrado.
Imediatamente tentaram levá-lo para um hospital próximo. Mas Louchet negou brusco, como se o inferno na mata não o tivesse sojigado. Fez um gesto para os médicos e se dirigiu à vendinha do negro velho. Após dias comendo raízes e frutos, precisava colocar comida salgada na boca.
A reunião da tese e da antítese, na História, é a síntese. A reunião do bem e do mal, na Estória, é a vida, sempre o clímax. E o resto, conto como escutei da boca de meu amigo. E o estranja retornou, mesmo ponto que tinha adentrado, e no tempo que ficou embrenhado, nenhum cabra de trabuco, portando winchester, conhecedor da mata, dos cheiros, das pegadas, dos rastros, ninguém não foi capaz de estabelecer onde o tal se enfiou, e todos foram o que já o davam por morto, morte matada, qualquer jaguatirica de-dentro faminta, ou mesmo morte-morrida, a fome, o cansaço, o não conhecer das artes de sobrevivência na mata. Magro, barbudo, só faltando as mais chagas pra lembrar Noss’Senh’us’Cristo, retornou e o dentro dele estava faminto e sedento, como nunca não esteve antes. E no momento em que comia o mesmo prato que tinha jogado ao chão do Preto véio, não era mais o galego estranja, empenado de coroações, mas sim um homem, cabra do Sertão, que acabara de retornar à vida, e que acaba de descobrir que não há sabor como este.
E assim eu, João Guimarães Rosa, transcrevi a história de Sebastian Louchet. Aos que não ficaram convencidos da filosofia cabocla apresentada, rogo apenas por tolerância. Porém, aos céticos, concluo a moral da fábula. Abram a Viva Culinária e vejam a pagina 36. Verão que, entre os célebres e coroados estabelecimentos culinários, figura solenemente uma única barraca de comidas típicas na categoria máxima de restaurantes. Não trato particularmente da estória, mas sim da história. Louchet, Raskolnivov, Augusto Matraga, sendo, de todo, no fato, homens do sertão, sim. Nada sobre a Estória, um pouco da história. Estas linhas não tratam de um conto específico, mas sim, um esboço da tríade da punição-expiação-redenção, que por mais de uma vez expus em meus escritos. O resto.. é resto. Sobranceiro? Fornido? Pff... Nonada...