quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Chesed

Queria escrever - longe de invencionices e odisséias - queria traçar, forma clara e concisa, um pequeno entendimento, um ensaio do sertão, uma ética cabocla - carta-ofício, sem qualquer literatura. Mas meu trabalho se apequena, afugenta-se. Detenho-me. Impossível, se não usar o vocabulário do Sertão, o vocabulário próprio, que aprendi com seo Manuelzão e com os outros boiadeiros, veredas afora, o vocabulário verdadeiro, que, por si só, mostra-me as verdades de minhas linhas. Um ensaio, uma ética, o maniqueísmo caboclo, a luta do bem e do mal, o Mal, o Muitos-nomes, as coisas todas que norteiam vidas e livros, gerais afora.
No inicio, e ainda cá não existe nenhuma literatura, Graciliano, eu e Zé Olympio aprazíamos de nada fazer, uma tarde quente na própria Livraria José Olympio Editora, o aguardo de um figurão americano, talvez interessado em Angústia. Creio que o incidente se deu após a minha volta, logo que conheci Graciliano, quando ele me confessou que em um concurso preteriu meu livro, concedendo a honraria à Maria Perigosa. Enquanto conversávamos, refestelei-me no sofá e peguei o primeiro livro que minhas mãos alcançaram. Fatigado, detive-me no título: A Viva Culinária do Brasil. Meu companheiro escarniou, leviano, sobre minha literatura; respondi-lhe que, em tudo que haja escrito no mundo, não devemos duvidar que exista uma vida. O resignado Graça me foi sincero. “Bonito. Meloso. De quem é?”. “Shakespeare” retruquei, creditando a apócrifa máxima.
A Viva Culinária, porém, só se atentava com estatísticas. O autor, Sebastian Louchet, célebre ignoto francês, classificava os melhores restaurantes nacionais. Julguei uma literatura inútil até visualizar, perplexo, um fato. Omiti o espanto ao meu amigo, como o omito agora; meus leitores, creio, compreenderão minha negligência apenas nas ultimas linhas desta desditosa carta.
Tempos depois, revivi o assunto Louchet com um amigo, Seo Manuelzão, caboclo velho e vivido, sábio oráculo das vidas das Gerais. Reescrevo, pois “a Lenda do Galego Francês”, tal qual soube de sua literatura verdadeira, oral, e também pelo que pesquisei - glossários, almanaques - a curiosa história do francês. Lembro-me da pergunta, se já ouvira falar em um nome assim...
Ij. Se conheço? Se só. Homem bom, teve as suas. Passou por seus bocados, o provar, o dia correto em que há de a casa cair, dia em que se deve estar pronto, solerte, pé em prumo, mão em massa e pensamento forte e único, pra saber se sair. Homem bom, todos os homens ruins não são de todo maldades, tem sua poucada de santidade. Nem Joãozinho Bem Bem, nem Alaripe, nem Salustio Rasga-em-baixo, nem Efígio Sete-frexa, nem Maranhãozão, nem os-do-Hermógenes, nem aquele que batizaram o Urutu-Branco, o Pássaro negro, nem Teofrazio das Gerais, deflorador de virgens e de quermesses. Mire e veja: todo valentão não é de todo valente, por mais que seus ares e bofes queiram dizer o contrário, que ache com os olhos que tem mundo em seus pés.
Esse tal, esse que pergunta, sujeito estranja, galego, muitos foram os apôdos que teve, cá nessas bandas. Todos o conheciam: Bastião Luxé, Tião-das-frô, ou ainda Tãozinseucú, por glosa, por seu tique incessante de fazer bico e pose e falar anasalado a última vogal, coisa mesmo de galego.

Insisti na pergunta. Conhecia? Como assim? , respondeu. Conhece-se vivente do Sertão pelo cheiro, pelo visto. Homem do Sertão? Como assim? Expliquei ou indaguei que era de França, que era de fora. Homem do Sertão, pois sim. Ara. Homem do sertão se dá em todo lugar, que nem pé-de-palma. É ração de bovino. Assuntarei:
O mundo, seo moço, é fôrma e fórmas: no moldar, no fazer, rezézinhas iguais se existindo, se nascendo, aqui e acolá, onde tudo é sertão; e novilhos, novos de não se entender, mas sim de se existir, o bué igualmente, o mundo novamente se principiando. E no todo, no molde, alguns, homens são do sertão, sim senhor: aqui, no Buriti, Capão Manso, nas Gerais, na beira do rio São Marcos, Pinhém, Veredas Mortas, no Jequitinhonha, no sul, de onde sopra vento e traz chuva, do mais norte, nos sertões da Bahia, de Pernambuco, de mais aléns, das estranjas, rico ou pobre, nobre ou não. Porque, para ser, identidade, do Sertão, tem de existir alma, cois’dentro, razão de ser, de se saber que homem do sertão e sertanejo são coisas próximas, maximé, e, nãostante, toda diferente, diversa. Homem assim tem o sertão dentro, conhece as veredas da alma, os solilóquios. As reticências. O intransitivo de se existir, um tal já não o disse, célebres palavras, a questão de ser, o sertão inteiriço? Sertão vem de dentro, seo moço, vem rasgante, rascrava em pele, em músculos, no respirar, no modo de se ver as coisas. Sertão é a solidão, e solidão se dá sem avisar, sem ter fronteiras, sem distinguir jagunço e senhor, mandante e mandatário. Periculosidades. Viver são essas coisas. O bom combate, os capões da alma.
Não creia? Não glose. Verdades há de outras bandas, também. Pão e pães, é questão de opiniães. O fato, o correto, é que Luxé glosou. Teve das suas. Tida e, sim, meresofrida. Vida é o azo, vida só é vida depois da tempestade, do ser e do não ser, a sabiencia. Responsório de Sapo-Rei que coaxa grosseirão: sofri, senti, vivi. Experiências. Não é isso a vida?

Disse-me essas, outras coisas. Dos glossários, tirei que Jovem, na França, Louchet se fez, entre outros de seu meio; uns revolucionários sem causa; outros burgueses que nada enxergavam a não ser a ponta de seus narizes. E das barricadas e dos cafés parisienses, a única cicatriz perpetuada de sua juventude foi a paixão por comida. Passou inteiriço por entre o ser e o não, por entre o apocalipticamente correto e a sonolexistência; o galego abocanhou o passado e abdicou dos planos paternos, que o moldaram para o pensamento ou a política; ganhou o mundo, com um apetite de não caber em si, talvez diria, se isso fosse um conto.
E assim entendi que Louchet, já o maior crítico gastronômico do mundo, criou uma estátua de si próprio e se acreditou um mito, altivo, crescido, imponente, ao lado dos bustos de outros de seu sangue, de jacobinos, escritores, pensadores, o rol antigo e orgulhoso galício.
Talvez por isso aceitou vir ao Brasil, a convite de uma confeitaria carioca. Com a passagem nas mãos, olhou-se no espelho; refletiu-se beato, já ensinando na capital, Buenos Aires, para os negros e índios daqui, tudo da arte da degustação. Imagino-me descrevendo sua vida em um conto qualquer: quase chorou de sua imensa bondade.
Hegel doutrinou a verdade conhecida como fruto de uma tese e sua antítese. Marx narrou a parábola do homem humilhado à condição de escravo que, pela dialética, condiciona as ações de seu superior, tornando-se senhor dele. Além dessa vã filosofia, todo sertanejo acredita no Maniqueísmo; a luta entre o Bem e o Mal. Na mitologia sertaneja, os pormenores e prelúdios se transformam em epopéias vividas pelos homens nas veredas do Bem e do Mal, incessantes.
Assim, conta-se que foi a vida de Louchet. Neste continente tropical, foi leiloado por espertalhões e interesseiros, por restaurantes e políticos e convidado a conhecer do sul ao nordeste, os quatro cantos do país. Dentre as paradas, dentre as tantas aporrinhações, as fotos, os prefeitos, as visitas aos restaurantes, já arrependido, já combalido do sertão, dos trópicos, do incessante sol, das muriçocas, do tempero brabo, das particularidades todas daqui, nas Gerais, foi obrigado a conhecer uma trilha inóspita e inesperada, uma trilha antiga de jagunços, por meio dos Buritis, das capoeiras, dos bambuzais, perto do Jequitinhonha. Empapado do escaldante sol e picado por negros e famintos borrachudos, foi parado por um velho negro, dono de uma vendinha de comidas, abastecedor de tropas, de cãs jagunços e moleques aventureiros, de bóias-frias, de todos os que precisam sobreviver nas Gerais; o negro, humildoso, ofereceu o maior prato que já fizera. O francês se sentiu insultado com o prato intransitivo; herege, jogou a comida à mãe terra e maldisse impropérios que todos dessa Babilônia compreenderam.
Então, aos olhos de todos, o velho negro baixou seus olhos de cão cansado e lamentou porque, para ele, sua cozinha era forma de sobrevivência e não arquétipo de arte.
Oxê, môço. Esse tal, Luxé, o galego, se desgostou todo, tresmudado; o sol, o sal, o sertão sem fim, tudo intenso, fazendo efeito, queimando pensamento, vertendo idéia, metamorfoses. Lhe falo mais é do Sertão. Porque Sertão é o criminal, as penas todas. Sertão é onde tem de ter a dura nuca e mão quadrada. E vivente do Sertão é no Sertão que só se encontra, o dentro pulsando, a raiva, o dêscontrole, mão em prumo, cuca em riste, a queimação... e diante de todos, diante do preto velho, que lhe ofereceu tudo o que tinha, a comida justa de Deus, o galego se possuiu. Equiparou-se. Perequitava. E disse coisas feias em sua língua, tão arrastadas, tão enraivadas, que todos fizeram o nomodopadrespirisantamem, com medo que diante deles estivesse o... bom, você sabe... o Cujo, o Oculto, o Não-sei-que-Diga, o Que-não-Ri, o Galhardo, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Coisa-Ruim, o Coxo, o Das-trevas, o Tisnado, o Pé-Preto, o Xu, o Arrenegado... nomes são tantos, o medo o mesmo, o medo presente - francês elevado à entidade.. vixe. E mais medo ainda tiveram quando Luxé deu com o comida no chão, blasfematório, feito comer carne em sexta-feira da paixão. Até que ele se foi, mata à dentro, ainda abocabaque, maldizendo tudo que encontrasse em sua frente. Mire e veja: Coisas que só podia acontecer aqui. Sertão, seo moço, é que nem amor para-com prima: uma vez existente, é câncer que não larga, perfura no fundo do coração, crava em riba d’alma, mesmo. É coisa que vivente tem, esconde, mas, hein, hein, não se pode esquecer por jamais. Mas é no sertão que tem o bom o mau. O Mau existe, mau e mal hão, dent’ da gente, mesmo em nobre empanado e estranja ou em preto humilde de cá. E passado o medo, restou o escárnio, o preto véio com olhos de cão cansado, o prato ao chão, os sorrisos de soslaio dos fotógrafos, dos figurões todos de Belorizonte. E o preto – a quem um já o alcunhou de vagabundo, cachaceiro e macumbeiro – o preto, sim senhor, ergueu o olho, e não era mais olho de cão pastor, mas sim de gato gorá, vermeio como o fogo, como dentro de melancia madura. Não creia? O sertão são mistérios... dizem... que logo em-seguida rancou de-dentro um boneco, pequeno, medorrento, e tornou a dizer, voz gutural, abobada: Estou espetando estranja, estou ensinando a estranja, estou acabando com vida de estranja. Praga forte, de-se pegar, dizem que maior que cerimônia de corpo-fechado.
Mas? Mais! Não digo. Não gloso. Somente posso, no simples, dizer: eis que entra em cena o poder contrário da dialética: o Mal do maniqueísmo matuto, o inevitável dia em que a casa há de cair e, pelo qual, seremos provados. A antítese de Hegel que, pela negação, prova a certeza final.
Quando Louchet e seu guia se embrenharam na mata, o inesperado da História – ou o inevitável da Estória – acontece. O guia suou frio, cambaleante. Louchet o vê tombar, moribundo, entre uns frondosos jequitibás. Um primeiro pensamento emergiu no francês. “Algum inseto picou mortalmente o guia”.
Inserto o incerto, do estático ao extático, seu único mecanismo de defesa foi correr. E no pânico, acabrunhou-se, mata adentro. Parou um bom tempo depois, ao tropeçar e se afundar em um manguezal.
Nomes estranhos. O guia foi homem que tombou, sem aviso, sem úi sequer, aviso de bala, de problema de coração. Tombou, como tantos outros. Maleita? A Sazonal? Nomes feios, que aqui ouriçam crente, só de falar. A coisa ruim. O Mal. Mas, essa dá aviso, o suor, a tremedeira, o delírio. Não era. Picada de cobra, de aranha, qualquer bicho venenoso? Urutu raivosa, coisa de honra? Plausível. Provável? Não senhor, sem ver, sem se ouvir, sem sinal algum. Urutú dá e já deu o bote? Só foi assim. Cruzeira que confundiu preá, homem ao chão, estranja sem chão... e o tal, Luxé, só fez correr, como cego, porque sua visão nada via, mundo novo, um Sertão todo por conhecer: e passou por meio de jequitibás-rosa, por arbustos, arvores, cheios de espinhos, cortantes, a mamica de porca ,também espinhenta, por sangue de andrade, deixa-falar, jacarés-novos, de pequenas folhas e de casca eriçada em tarjas, cristas listéis e caneluras. Correu: entre as cores, as imbaúbas, grandes e esguias, tropeçou pelos filetes caídos de cipó-bracadeira. Afundou-se no húmus, na terra fofa e cheirosa, no resto de folhas verdes, vermelhas, convexas, estreladas, enormes ou nem-tanto. Molhou-se nos corgos, águas cristalinas, o remanso d’alma, o fino caldo que deságua caudaloso mais longe e mais além vira mar, que vai pra sua terra. Embrenhou-se, jagunço de primeira, o coração selvagem da mata.
Respirou. Profusamente, tentou acalmar-se, lembrar de sua genialidade e de seu rosto ilustrando os futuros livros de História. No eterno momento que antecede a morte, Louchet revisitou a sua vida: inflamados discursos, muita comida, condecorações e sua estatua, imortal.
Mas de nada adianta ser uma estátua imortal se está prestes a morrer na lama, sem espectadores e perdão. Assim, dizem, tantas vozes diferentes, Louchet chorou o pranto dos derrotados. Chorou a anunciação de seu fim e a farsa que toda a sua vida se transformara, em um único momento. Então rezou com palavras suas, inventadas, para alguma religião distante. Parou, humilhado, por que implorava por um Deus que desconhecia; e afrouxou seus músculos e deixou o corpo aos vacilos do destino de todos nós – a morte.
Então já que não podia lutar, ao menos, poderia pedir desculpas. E assim rogou; perdão a tudo e todos; perdão por sua vida, como nunca havia feito. E, lentamente, transformou toda a piedade em um sentimento vivo de misericórdia; mal sabia que, enquanto pedia perdão ao mundo, passaria fome e sede, mas conseguiria algo mais difícil - o perdão de si próprio.
Após as lamúrias, reuniu coragem, as forças restantes e se levantou. No inicio da nova jornada, caminhou cauteloso, tentando dominar o terror. Depois, decidiu que deveria articular palavras para não enlouquecer. Abafou o medo goela abaixo e cantou baixinho as cantigas folclóricas francesas e, aos brados, os versos da Marselhesa. Magro, coberto de misericórdia e sujeira, Louchet iniciou uma nova aprendizagem. Aprendeu a achar água nos cipós, a pisar no solo encharcado e os frutos que poderia comer. Feito Jesus em via crucis, desabou nas varias vezes que o alimento faltou ou que descobriu andar sem rumo. Agoniado, nas horas de desespero, clamava à floresta que enviasse logo a morte. Mas vencido o penitente rancor, exaurido o corpo e a alma, levantava e seguia adiante.
Seo Manuelzão narrou estas e outras desventuras do inferno que o francês viveu na mata. E apenas quando a revolução fosse completa, o Grande Literato colocaria a clareira de volta em seu norte. Retornava ele ao local que tinha entrado.
Imediatamente tentaram levá-lo para um hospital próximo. Mas Louchet negou brusco, como se o inferno na mata não o tivesse sojigado. Fez um gesto para os médicos e se dirigiu à vendinha do negro velho. Após dias comendo raízes e frutos, precisava colocar comida salgada na boca.
A reunião da tese e da antítese, na História, é a síntese. A reunião do bem e do mal, na Estória, é a vida, sempre o clímax. E o resto, conto como escutei da boca de meu amigo. E o estranja retornou, mesmo ponto que tinha adentrado, e no tempo que ficou embrenhado, nenhum cabra de trabuco, portando winchester, conhecedor da mata, dos cheiros, das pegadas, dos rastros, ninguém não foi capaz de estabelecer onde o tal se enfiou, e todos foram o que já o davam por morto, morte matada, qualquer jaguatirica de-dentro faminta, ou mesmo morte-morrida, a fome, o cansaço, o não conhecer das artes de sobrevivência na mata. Magro, barbudo, só faltando as mais chagas pra lembrar Noss’Senh’us’Cristo, retornou e o dentro dele estava faminto e sedento, como nunca não esteve antes. E no momento em que comia o mesmo prato que tinha jogado ao chão do Preto véio, não era mais o galego estranja, empenado de coroações, mas sim um homem, cabra do Sertão, que acabara de retornar à vida, e que acaba de descobrir que não há sabor como este.
E assim eu, João Guimarães Rosa, transcrevi a história de Sebastian Louchet. Aos que não ficaram convencidos da filosofia cabocla apresentada, rogo apenas por tolerância. Porém, aos céticos, concluo a moral da fábula. Abram a Viva Culinária e vejam a pagina 36. Verão que, entre os célebres e coroados estabelecimentos culinários, figura solenemente uma única barraca de comidas típicas na categoria máxima de restaurantes. Não trato particularmente da estória, mas sim da história. Louchet, Raskolnivov, Augusto Matraga, sendo, de todo, no fato, homens do sertão, sim. Nada sobre a Estória, um pouco da história. Estas linhas não tratam de um conto específico, mas sim, um esboço da tríade da punição-expiação-redenção, que por mais de uma vez expus em meus escritos. O resto.. é resto. Sobranceiro? Fornido? Pff... Nonada...

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