terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Nezah

Há coisa mais clichê que botar a culpa nos livros para os nossos próprios erros? Seu Juiz, matei, mas a culpa é do Apanhador no Campo de Centeio. Ah, amorzinho. Se a Madame Bovary pode, porque eu não? Tô te falando, cara. A onda é largar o emprego, praticar magia, conhecer Machu Pichu e o Caminho de Santiago, que nem o Paulo Coelho...
Pois não é que dia desses, quando eu saia de casa, fui abordado por três sujeitos. O primeiro, um homenzinho carrancudo, cabelos grandes e encaracolados, nariz grande, adunco, disse:
- Por sua culpa, nossa Sociedade Secreta entrou em declínio.
Loucos sempre existem. Aconteceu com o John Lennon. Aconteceu com o Papa. Era a minha vez?
Os outros dois apenas observavam, um gordo com terno amarrotado e um careca, com óculos escuros, estilo aviador, os três com chapeuzinhos pequenos, engraçados.
- Ahn?
- A maldita história do Fugu. O peixe assassino. Você expôs o lema de nossa ordem. Deve arcar com as conseqüências disso.
Respondi que não conhecia a sociedade deles. Imediatamente, fui instruído pelo gordo – eram os Hasidim, Nequaquam, Hermeneutas ou outro nome engraçado, que agora não me recordo. Foi logo repreendido pelo homenzinho, que olhou severamente para o gordo e proferiu:
- Pregamos, dentre outra coisas, a salvação da alma pela mortificação do corpo. E maltratamos nossos cinco sentidos, com a esperança da salvação eterna.
-Que mais pregam? Perguntei curioso.
- A monarquia celestial Farroupilha e a santificação pela ingestão de alcachofras... mas isso não vem ao caso. O que importa é que deve você pagar as conseqüências.
-Até posso arcar com as conseqüências, mas me expliquem a causa, para que eu possa entender...
- Ora, não está claro? Você escreveu sobre uma sociedade que morre sempre na mesa, após comer. O fugu também é nosso símbolo, o veneno, a morte gradual, resultado da utilização de um dos nossos cinco sentidos... com paródias, você utilizou nossa Sociedade.
Não ousei discutir com o homenzinho e dizer que a História do Fugu era justamente oposta: a de pessoas que comiam com a probabilidade de que o peixe – se não bem cortado – estivesse envenenado. E que tal probabilidade transformava a degustação em uma experiência única... e deliciosa. A satisfação plena de um dos sentidos.
-Tudo bem. Qual é a conseqüência que devo pagar?
-Será seqüestrado por nós. Deverá percorrer o mesmo caminho que percorremos, para que se arrependa e para que também salve essa alma pecaminosa.
Argumentei que estava em dia com o dízimo e com os carnes de sócio Torcedor do Inter. Disse que tinha remédios pra tomar, que era comunista e que era alérgico a alcachofras. Como podem imaginar, não deu certo. Após as negativas do homenzinho, o gordo me sorriu, piscou um olho e disse, para meu total desespero, que eram mais ortodoxos que reclame de xarope. Loucos, pensei. Finalmente, chegou a minha hora...


***

- Deve passar pelas provas que também passamos. A total mortificação dos sentidos. Um a um. Deve maltratá-los, de forma que sinta a paz interior, a paz que só se consegue ao desprezar o corpo.
-E como começamos?
O primeiro dos sentidos que deve desprezar é o olfato. Deves buscar na sua mente aquilo que o teu nariz mais repudia. É, obviamente, uma escolha personalíssima. Eu passei um dia em um quarto com carne podre. Eles – apontando ao careca e ao gordo – escolheram um lixão aqui da cidade e óleo de rícino.
-Sim, sim. Pois eu tive um trauma na minha infância. Fui obrigado a comer um prato, por muitos anos e não suporto o seu cheiro.
- Ora, pois. Mostre o prato que compartilharemos da tua aflição.
Levei-os a um restaurante sofisticado e conhecido de Porto Alegre. Com o cardápio em mãos, titubeei um pouco com o Fusili fresco com cherne. Mas, triunfante, pedi o famigerado Taglioloni ao cioccolatto.
-Alias – disse ao garçom – se possível, queremos observar o maitre fazer o prato.
E piscando condescendente para os três, justifiquei que assim a tortura seria maior.
Palavras são apenas palavras para justificar a sinestesia do Tagliolini. Os elementos todos à nossa frente, primários, combinados, amalgamados, mais seus cheiros, suas cores, suas texturas. A massa primária, a farinha, misturada com o chocolate suíço derretido em banho Maria, as formas delicadas da feitura do Tagliolini, a manteiga Aviação na cenoura e no salsão.
Quando misturados com a carne de javali em cubos e o buquê aromático, senti o gordo soltar um gemido baixo. O maitre, indiferente a minha recém adesão à seita, juntou o vinho Cabernet, deixando-o evaporar, cozinhou por um bom tempo, adicionou cuidadosamente o caldo de carne e o sal e a pimenta. Separadamente, cozinhou na mesma manteiga cogumelos, juntando-os com a carne de javali. Por fim, cozinhou bem a massa, o tagliolini escuro e cheiroso, e a despejou no molho fervente, acrescentando avelãs e queijo parmesão. Aquilo que um dia eu imaginara escrever em alguma coluna como o Yin e o Yang, a combinação sublime entre o salgado e o doce, o carboidrato e a proteína, o branco-dourado do parmesão e o escuro-amarronzado do chocolate inserido na massa, o leve, porém agressivo tom da pimenta de mãos dadas com a aristocrática avelã, o aroma rústico e pesado do javali em contraste com o suave Cabernet. Olhei para o lado e imaginei que meu amigo gordo tinha pensamentos mais libidinosos que o meu. Bingo! Ninguém é gordo por comer alcachofras...
Todos nós perplexos, diante de nós o ensoph, o absoluto dos cabalistas, o pequeno milagre, O homenzinho pequeno e enfezado incapaz de decifrá-lo e o gordo, muito capaz de devorá-lo. Diplomático, senti que devia intervir, antes de criar uma dissidência, uma divisão na seita que acabara de entrar...
- É possível eu matar dois coelhos com uma tacada só. Não suporto o cheiro e o paladar disso. Posso comer tudo e, assim, ganhamos mais tempo.
-Eu... eu também acho que não suporto o paladar desse prato. Posso comer com ele? Perguntou o gordo ao homenzinho, como um filho que pede um sorvete antes de jantar para a mãe.
- Cale-se. A prova é dele e não sua, respondeu o homenzinho, como uma mãe que nega o sorvete.



***


- Deves agora maltratar a visão. O que mais aflige seus olhos? Respondi-lhes sinceramente que o que me afligia há muito tempo era a visão do Último tango em Paris. E, com eles, vi Paul e Jeanne, se entregando um ao outro, de todas as formas, de todos os jeitos, sem conhecimento de suas procedências e seus nomes, face a face imitando de maneira gutural o som dos primatas ou a Jeanne dizendo que não necessitava dele e se masturbando na cama...
Estavam perplexos, excitados, quase acabados. A genial interpretação de Marlon Brando sem querer foi a responsável por uma crise em uma seita de loucos. Porém, faltava o golpe final, a tacada de mestre, a rolada do Pelé para Carlos Alberto.
- Agora mostrarei minha maior aflição, aquilo que todas as noites me angustia. E é justamente a prova que falta para que eu seja aceito: o tato.
Não conseguiria meu objetivo sem o Google. Santo Google. Junto com o ar condicionado e as calças de ginástica, as três maiores invenções do século passado. Bendito Google. Nosso oráculo, nossa enciclopédia. Google, que Borges – sempre ele – conhecia e que, por erro, denominou-o como Aleph (não é, meu caro Millor?). Google, o ponto que contém todos os pontos do universo, o milagre de acharmos que se pode ter tudo ao alcance de nossas mãos, ou de um clique.
- Meu último pavor não é de ser tocado. Na verdade, nunca a conheci. Mas conheço algo que vai dar a imaginação do que eu sinto.
E digitei as palavras mágicas, as palavras que me levariam para a salvação, o três dáblios, o ponto que tudo contém, a opção por procurar por imagens.
Procurei por um nome, um nome que, provavelmente, eles já conheciam, como eu.
- Para entender o que eu sinto, é necessário um exercício imaginativo, porque meu terror é apenas mental; é impossível que um dia se concretize. É importante que vocês olhem as imagens do Google imaginando um texto que lerei pra vocês, que escrevi um dia desses. Assim conseguirão sentir o tamanho do meu tormento.
E assim li o que se segue:
“ Dia desses, coisa de repórter que não tem pergunta pra fazer, perguntaram-me o que eu achava do Paraíso. Respondi que a única visão do Paraíso que eu tenho é a de que o paraíso é uma grande nuvem branca, com rios límpidos e puros, com pássaros piando sons ternos, com videiras, amoreiras, pessegueiros e, principalmente, com Yelena Isinbayeva. Digo mais, se me é permitido um pedido, uma graça concedida por Deus, uma só, não quero imortalidade, fama, sucesso, nada de nada. Só quero, quando morrer, ser acordado no paraíso pela Yelena Isinbayeva. Nada mais, tesouros, imortalidade, fama, o escambau. Trocaria tudo pra ter a Isinbayeva me acordando com sua voz suave e me tocando, como quem toca a vara que lhe dará o centésimo vigésimo terceiro recorde mundial no salto com vara. Salvo engano, estamos nós dois nus, porque estamos no paraíso, e creio que o contrato vitalício com as roupas da Nike da Isinbayeva não valem no paraíso. E depois de me acordar, ela, em seu colo macio, me preparará um combinado de Stolichnaya original, pedaços de gelo celestial e uvas do paraíso, colhidas por ela mesma, enquanto treinava seus saltos. E enquanto eu sorvia lentamente a bebida, sob a relva verde e macia, olhando pra seus olhos, que me mostravam ao fundo, enquanto eu tomava o insuspeito néctar dos deuses, Isinbayeva lia, em russo mesmo, a parte que Raskolnicov mata a pauladas a velha do Crime e Castigo. E, de minha fronte, lágrimas escorriam, misturando-se ao leito de um rio límpido e tranqüilo. E quanto mais ela lia, mais de minha fronte insistia em derramar lágrimas para o límpido rio. Porque só eu sei o quanto é lindo, deitado nas coxas firmes da Isinbayeva, escutar ela ler Crime e Castigo em russo, língua estranhíssima. E é lindo, simples e unicamente, porque é a Isinbayeva, por que se ela estivesse cantarolando qualquer jingle dos carros Lada, eu choraria da mesma forma. E quando eu me cansava de escutar aquela melodia celestial, ela me virava de costas e fazia massagens em toda a minhas costas, enquanto todos os outros anjos se invejavam da beleza completa daquela insuspeita deusa...”
Creio ter parado por aí, enquanto os três olhavam sem piscar todas as imagens da Isinbayeva. Estavam embriagados, seduzidos, pelo canto da sereia que emanava de uma tela LCD de 17 polegadas, embebidos pelo par de olhos azuis estonteante da russa. Perfeito, pensei. Nem vou precisar apelar... .
O homenzinho jogou o chapéu no chão, deu um gemido por sua derrota e disse talvez as palavras mais sentidas que já disse em sua vida: Pô, Luis Fernando. Parei contigo.
Virou-se então nos calcanhares pequeninos e saiu, pra nunca mais ser visto.
Os outros dois ameaçaram ir, fizeram menção de também jogarem seus chapéus, de também fingirem nervosismo, mas os olhos azuis na tela do Google foram mais fortes.
- Há mais dessas? Perguntou o gordo.
- Você não viu nada, respondi sinceramente. Espere até eu mostrar a Luana Piovani.
Eles fizeram um ohh de perplexidade e então que arrematei, dono da situação, experiente, ares de Grão Mestre.
- Mas, com a Luana é diferente. Meu sentimento pela Luana é avuncular.
Salvo engano, criaram uma igreja com sede no Rio de Janeiro, em que se auto-intitulam “Avunculares” ou “Avunculianos”. Nunca descobri se há algum nexo de causalidade.

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