segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Chokmah

Coisa engraçada, a memória, este impalpável e inumerável objeto que detemos, que utilizamos tanto quanto a própria respiração, que tal como esta é vital para nossa existência, e que, talvez por ironia, quase nunca lembramos de agradecê-la, de saudá-la, Ó memória, és tu que me lembra da vida, és tu que aponta sempre meus afazeres, és tu, diariamente, que me diz, Acordas, tem de ir trabalhar, tem de ganhar o sustento, o pão, o vinho de cada dia, sem tu não me lembraria de meu nome e do nome das tantas coisas do mundo. Não é objectivo deste trabalho um peremptório ensaio sobre a memória, sobre essa pouco ou nada sei mais que o senso comum, que a memória é, age e influencia por ação ou por omissão em todos nós, diariamente e durante a vida inteira, e essa constatação já me é suficiente, não importa o que concluam os filósofos e os cientistas destinados a estudar tão intrincado problema. Aos que não se aperceberam, repetirei minha sentença, A memória nos é vital, por ação e por omissão, pelas coisas que não nos deixa esquecer, salvo falhas justificáveis, as coisas que marcamos como importantes, como o aniversário da filha mais nova, o nome do cachorro, a idade que tens sua esposa e também pelas coisas que não nos deixa lembrar, assim não nos transformando em um repositório infindável de acontecimentos passados, de pensamentos pretéritos de previsões futuras, de outras lembranças, menos pretéritas, mas ainda assim no pretérito, das frustrações de que o futuro, vivido e relegado ao imutável passado, não foi como o previsto, e de tantas outras chatices inumeráveis, o tom de gravata desbotada de um colega de trabalho, o café fraco de uma tia, o sapato pouco confortável em uma reunião, fatos passados sem que fossem marcados com o crivo de importante, fatos que a memória tratou de separar, o joio do trigo, e assim postergou para o esquecimento. Com desculpas pelo trocadilho, esquecemos que a memória não é importante apenas posictivamente, lembrando coisas, mas também em seu oposto, de forma negativa, esquecendo o irrelevante.
Obviamente, mesmo este admirável e inexplicável instituto humano não é perfeitamente eficaz, objectivamente dizendo, na triagem do que é relevo e do que não é, e talvez não seja perfeito pelo simples fato de pertencer ao homem, que é imperfeito por natureza própria. Desta outra sentença, muitos outros ensaios podiam surgir, a natureza da memória e o porquê de suas falhas, a sua gastura com o tempo, os lapsos sem razões por determinados momentos, a sua reação com situações extremas, de medo e de perigo, os picos, os sonhos, a relação dos sonhos com o que conhecemos, as negligências propositais, os esquecimentos imperdoáveis. Entre essas duas últimas características, quais sejam, de uma justificável negligência e de um esquecimento intolerável, situo o que ocorreu comigo em relação ao caso da terrível e curiosa história de Jesus Alcântara Machado. Agora, com auxilio de glossários, de catálogos sobre o acidente e ainda de factos supervenientes marcados em brasa em mim pela memória, sou capaz de narrar o terrível acidente do empresário, com todas as minúcias, com todos os pormenores, mesmo os detalhes esquecidos por todos, o choro sentido da rapariga mais nova, a viúva em seu luto, em frente à câmera da TV, forçando um choro que dificilmente saiu. O facto é que, quando o acidente se deu, no princípio de 90, ocorreu a comoção geral, natural das tragédias, a catarse própria do instinto humano, pessoas dizendo para elas mesmas, Ai, se fosse meu pai, se fosse minha família nesse acidente, forças a família, mas bênçãos a Deus que isso não ocorreu comigo, etc., o justificável egoísmo misturado com pena na hora da morte alheia, ainda mais quando a morte alheia não é natural, mas antes, fruto de uma fatalidade inesperada, um acidente, um tombo, um enfarto, dando a todos a reacção falsa de que uma morte sem avisos gera mais dor do que a ausência decorrente de uma morte anunciada.
Jesus Alcântara Machado partiu de Lisboa desgostoso de si em Março de 90, disseram todas as línguas, quando entrou no avião monomotor particular, um dos últimos regalos que se permitiu, o avião pequeno, tripulado por ele e seu piloto, com a alcunha Alcântara Machado inscrita sobre a asa, e subiu para o vôo final, o vôo que o levou desta vida. Quando se divulgou na TV o desastre, todos se espantaram, todos se apiedaram, o triste fim de um importante empresário Lisboeta que, como convém às grandes biografias, nasceu sem nada e fez seu império próprio, a custa de seu esforço e de seu labor, no caso específico, um império de bolachinhas doces, com sabor de caramelo e a preços sempre acessíveis. Com esta fórmula, ergueu seu império de caramelo nas décadas de setenta e oitenta, com posses, títulos e honrarias, douto e honrado cidadão Lisboeta, dono de apartamentos, de terras, de reconhecimento e conheceu o princípio do ocaso no fim da década de 80, dizem, pelo fruto precoce da globalização, que introduziu bolachas de todos os países, de todos os sabores e com preços ainda mais acessíveis que as bolachinhas redondas de caramelo de Alcântara Machado. A globalização teve o mesmo efeito que se qualquer totalitarismo tivesse ocupado todo Portugal e assim dissesse, Olha, tuas bolachinhas já não são mais queridas por nós, que agora detemos o poder, e este sabor caramelo, a partir de então, será considerado subversivo ao sistema imposto. E tudo isso porque, pelas vias de facto ou de maneira sutil, o resultado foi o mesmo para Alcântara Machado, foi o de simplesmente a ordem vigente dizer, Não comercializes mais tuas bolachinhas porque não queremos. E o lento ocaso devido às transformações políticas e econômicas se transformou rapidamente no crepúsculo, a já anunciada noite da falência e a conseqüente queda e vergonha de uma das famílias mais emblemáticas da alta sociedade portuguesa, para um limbo pior que o dos pobres, que é o daqueles que foram ricos e tiveram posse e depois volveram à miserabilidade. Obviamente, os comentários, muitos maldosos ou infundados, correram alguns jornais, alguns telenoticiários e muitas bocas, transformando-se, aumentando a desgraça da família e assim foi que chegaram até mim, creio, naqueles tempos, o fim das bolachinhas, a desgraça de Jesus Alcântara Machado, de sua esposa, de seu filho mais velho já iniciado nos decadentes negócios e de duas raparigas impúberes, que não tiveram tempo de usufruir da glória conquistada por seu pai e pelas agora infames bolachas. Mas e as posses, os terrenos, os títulos da dívida pública, todas as aplicações, perguntam-se-lhe todos, mas a família Alcântara Machado não tinha aplicações, simplesmente pelo facto de que acreditavam na eternidade das bolachinhas, que deveriam ser imunes ao tempo e a política e deveriam proporcionar sempre uma vida soberana, mas, como dicto, não o foram, transformaram-se em persona non grata da ordem vigente e as posses todas não foram suficientes para pagar as dívidas, o mau gerenciamento da empresa e ainda todos os direitos trabalhistas dos empregados.
E quando o avião da família rompeu os céus, levava consigo não só o corpo do empresário, mas toda a sua história feita de bolachas, todo esse passado glorioso que acima descrevi e assim que o avião se despedaçou em partes no ar e se quedou, não foi simplesmente o corpo que restou dilacerado; também o estavam toda a honra e glória da família Alcântara Machado. Mas a catarse, como também o é natural, dissipou-se, tão rápido quanto se formou no seio de toda a sociedade portuguesa e, passado um ano, ninguém mais se lembrava do ocorrido e do que acontecera posteriormente aos parentes que continuaram a viver. Confesso que me incluo à lista acima dicta, não tenho o mesmo sobrenome do falecido no acidente, já tenho muitos mortos próprios para me lamentar e, de todo modo, nunca gostei de bolachas de caramelo, e por tudo isso, já passados alguns meses, não me recordava quem fora Jesus Alcântara Machado. Não lembrei quando troçaram dele na reunião do partido, Esse é que se saiu bem, viveu o máximo da vida que pode, com luxúria, com mulheres, com glamour, esbanjou tudo e quando as mesmas pessoas que lhe deram tudo resolveram lhe tirar, saiu dessa vida. Foi logo repreendido, por outro, sujeito novo no partido, inominado, magro, Barbudo, olheiras fundas e escuras, sempre silente, sempre as mesmas camisas puídas, sujas, o odor muitas vezes demonstrando que tinha varado a noite bebendo e muitas outras noites sem conhecer uma ducha, cabelos desgrenhados, dizem, recém chegado a Lisboa, mas insuspeito, já que barbudos são o que mais se vê entrando e saindo no Partido, Não digas isso, irmão, ele foi capitalista, pode ter oprimido pessoas, mas não nos compete julgar, dizer, peremptoriamente que foi aproveitador ou que deixou de viver porque as coisas pioraram. Mas a repreensão em favor de um capitalista, antigo milionário empresário, se não é aceita em condições normais, quiçá vindas de um sujeito que não se sabe o nome, que não se sabe a procedência, sem credenciais no Partido, sem a eloqüência dos antigos coronéis barbudos, E tu companheiro, recriminas-me por denunciar um safado, um corruptor, explorador de muitos trabalhadores, pais de família desesperados, perguntou o antigo coronel, Por acaso queres me dizer que tende a proteger o falecido. Não quero proteger ninguém, respondeu o Barbudo inominado, já sem a calma, já sem o silêncio costumeiro das poucas reuniões que ali comparecera, os olhos injetados, de bebida e da discussão, as mãos um pouco trêmulas, Não posso proteger ninguém, já que não consigo nem mesmo me proteger, apenas acho que acusares um terceiro, que aqui não estás nem pode estar e que não tem defesa, é injusto. O antigo coronel do partido reagiu, já vermelho, já inflamado, porém ensaiado, a discussão acalorada sempre foi afeita aos membros do Partido, cada ambiente tem suas mostras próprias de virilidade e, neste, a eloqüência, a rispidez e a raiva nos discursos são indicadores dos machos que se sobressaem, e disse, Blasfêmia, agora no partido que tanto ajudei durante tantas décadas, que tanto combati, não posso mais sequer citar o nome de um infame rato, que sempre repugnei, que morreu covardemente, Covardemente, retrucou o Barbudo sem nome, como podes dizer que um acidente de avião é morrer de forma covarde. Pelo que eu saiba, respondeu o Coronel, a fábrica que ele sempre manteve estava a beira da falência, Não estava, apenas foi uma crise passageira e, logo após o acidente, a fábrica seguiu o mesmo curso de sempre, reergueu-se, há vários trabalhadores honestos lá, bem tratados, respeitados, com toda a dignidade do labor. Não tente me fazer acreditar nisso, disse o Coronel, Pelo que me contaram, o morto não morreu, suicidou-se, a tragédia não foi uma fatalidade, mas sim um facto premeditado... e nisso parou de falar porque o Barbudo, sem nome, sem história, sempre calado e sempre calmo, presente em poucas reuniões anteriores, grudou na garganta do velho Cacique, ex-presidente do partido, honorável por todas as condecorações, e disse, Velho pilantra, não fales do que não sabe, quem achas que és para julgar uma vida, você que nunca fez nada além de politicagens.
Aos poucos, da surpresa, os demais conseguiram conter a raiva sem horários e sem propósitos daquele que nunca souberam o nome e que nunca saberiam. Inútil ter que acrescentar que foi expulso sumariamente por todos os membros e convidado a nunca mais aparecer naquelas fileiras, para minha tristeza, já que tentei dissuadi-los, tentei fazer, inutilmente, que ao menos dessem chance para que falasse seu nome, sua história e o motivo de sua raiva. Não deixaram e não permitiram que eu fosse atrás, e esse foi o gérmen para que eu pesquisasse profundamente a vida e morte de Jesus Alcântara Machado e que, assim, por este facto, cravasse em minha memória como lembrança a ser guardada, pela peculiaridade e pela estranheza. Peculiar por que, conforme dito, brigas ocorrem freqüentemente no partido, mas, como já dito, são todas previamente ensaiadas, discursadas e politizadas, e nunca dessa forma, já nas vias de facto, e estranha porque nada justificava a raiva do barbudo sem nome, já que, obviamente, em nosso meio, maldizíamos comumente fulano ou beltrano, e uma briga, por um antigo fabricante de bolachas, falecido e esquecido, pareceu-me, não totalmente fora de propósitos, mas sim, de propósitos ocultos, que ali passaram despercebidos por todos, incluindo-me. Com essas premissas e indagações permaneci alguns dias após o incidente, não retornei ao partido por que sabia que ali o assunto estava julgado e sentenciado já, dessa forma, O barbudo sem nome não passou de um espião, que não conteve a ira ao escutar verdades de um dos seus, e não procurei saber nada com os amigos do empresário falecido, por que me pareceu de uma intromissão sem razões. Mas a curiosidade não cedeu e busquei em jornais antigos, em memórias melhores que a minha na biblioteca municipal tudo aquilo relacionado com a vida do morto e tudo o que se passou antes e depois do acidente. Obviamente, descobri o que o senso comum sabia, da terrível tragédia, da história da família, do apogeu e do declínio das bolachinhas sabor caramelo, e do triste fim de Jesus Alcântara Machado, somado com outras proposições, menos verificáveis, mais afeitas ao ideário popular, como a que o Coronel falou no dia do incidente, que o acidente foi combinado, que Jesus se suicidou no momento em que descobriu não ter mais forças para reerguer seu império, entre outras lendas, que não foram suficientes para acalmar minha curiosidade, Porque o barbudo sem nome e sem história defendeu com sua vida a memória do empresário morto, não parava de me questionar. Levado por esta curiosidade, deixei-me andar pelas ruas de Lisboa – nessa época ainda não sofria de represálias nem de muito assédio – atrás de possíveis pistas, que pudessem me mostrar o que realmente ocorreu com o empresário e porque tanta paixão em protegê-lo detinha aquele comunista sem nome. Para certa surpresa, encontrei a fábrica de Bolachinhas de sabor caramelo no local em que deveria estar e esta não estava deteriorada, não estava fantasmagórica e vazia, como convém a todas as fábricas portuguesas que sucumbiram à concorrência do mercado externo, mas estava sim, lá, letreiros grandes e luminosos, intensa movimentação de pessoas e carros, e a chaminé pulsante, indicador maior que a atividade está intensa como outrora, como nos bons tempos de Jesus. O velho Cacique disse que a empresa falira e o Barbudo sem nome que o mau momento havia passado e, nisso, admiti, ao ver o letreiro, a movimentação e a chaminé, tinha razão o Barbudo desconhecido, e talvez essa singela afirmação me deu coragens de entrar na fábrica, de talvez com sorte conversar com a viúva, omitir o acontecido, mentir minhas credenciais, Sou jornalista do jornal tal, espero que não se incomode, estamos realizando uma série de reportagens sobre os perigos aéreos e possíveis prevenções, será que a senhora poderia conceder o relato da morte do seu marido, se não lhe fosse inconveniente. E com esses pensamentos, cruzei o portão central, e me identifiquei na portaria, Quem és, Chamam-me José, sou jornalista, E que aqui queres, saber da qualidade das bolachinhas por acaso, Não, quero apenas conversar com a viúva do Senhor José de Alcântara Machado, o motivo de minha entrevista é justamente o acidente aéreo. O empregado se silenciou, pensou alguns segundos, e ligou para outra pessoa, que chamou a viúva, Olha, Sra. Machado, aqui está um senhor que se diz jornalista e que quer lhe perguntar a respeito do acidente aéreo de seu marido... sim... a senhora está ocupada... e não falas nada sobre o Sr. Jesus, a não ser na presença de teus advogados... certo.
Tenho agora a certeza que uma simples conversa com a viúva, a respeito do acidente e de como, por motivos judiciais e factuais posteriores, a fábrica se reergueu, insuspeitável fênix no coração de Lisboa, me bastaria, mas a peremptória resposta negativa serviu apenas de lenha em minha inquietação, para que eu me desse conta que algum tabu se encontrava certo entre a história oficial e o mito popular. A negativa me deu coragens e forças para tratar do assunto com outras pessoas, uma barreira estava quebrada já que eu tomara coragem de falar com a pessoa mais delicada a se tratar do caso, que sempre é a viúva e o facto de mentir uma vez dizendo-me jornalista justificou as posteriores mentiras, sempre da mesma forma, Olá, sou do jornal tal, sabes alguma coisa da morte de Jesus de Alcântara Machado. E com essa credencial falsa e essa insistente pergunta foi que consegui a identidade do piloto sobrevivente, única testemunha da morte do empresário. Dizem que, como o avião caiu no meio da mata, o piloto apareceu alguns dias depois apenas, em frangalhos, e não se mostrou à imprensa nem para as câmeras, obliterado inteiramente pelo facto de sido ele o sobrevivente e morto o antigo rico e famoso empresário. Com algum custo, e sempre com a bem vinda ajuda do dinheiro para pagar um funcionário subalterno da prefeitura , deparei-me na casa, simples, no Alemtejo, salvo engano habitada pelo piloto, e sua esposa e seus filhos. Ó de casa, fiz a saudação trivial e logo me apareceu na porta uma mulher, robusta e sisuda, Que queres, perguntou-me, Quero conversar com o marido da senhora, disse. Se, por força de linguagem ou de poética, algum dia escrevesse um romance sobre tal caso, dir-lhes-iam que a expressão dela se alterou, lentamente, como a do porteiro quando soube que eu queria perguntar à viúva sobre o falecido. Alterou-se por alguns longos segundos, a expressão talvez de incredulidade ou debilidade, de que pedimos algo impossível, já que é impossível falar com os mortos. Meu marido não está, respondeu secamente ela, Quando ele chega, disse eu também de forma seca, Não chega, não chegarás nunca mais, respondeu-me, fazendo com que eu compreendesse, embora não soubesse os motivos, que eu não conseguiria falar com o piloto do avião abatido, Porque não voltarás, perguntei, Não voltarás porque não voltarás, respondeu-me, Não voltarás, porque me abandonou, Abandonou como, e após alguns segundos de silêncio ela enfim disse, Abandonou, entregou-se a bebida, ao vício, as prostitutas de Lisboa, as causas políticas impossíveis, não voltarás e, mesmo que quisesse, eu não aceitaria, nem eu, nem minhas filhas, órfãs de pai. Pedi desculpas e me despedi da esposa do piloto, um pouco acanhado de, mesmo sem querer, cutucar uma ferida aberta, a de um marido pródigo, que nunca irá se redimir, nunca voltarás e dirás, Desculpe, mulher, errei, mas estou de volta, para teus braços e para educar, como se convém a um pai de família, essas pequenas gajas.
Um pouco atordoado, caminhei a esmo, deixando-me levar por bifurcações e esquinas que não me recordo o nome, por quarteirões esquecidos e por placas que nada me diziam, caminhei ao acaso, apenas pensando em todos os fatos ocorridos nos dias anteriores, um comunista sem nome que sabia e protegia a memória suspeita de um empresário falido, a reserva injustificada da viúva, a resignação e o remorso da outra viúva, qual seja, a do piloto, que perdeu o marido, não para a certeza da morte, mas para a certeza da luxúria que acomete todo homem, mais cedo ou mais tarde e, com estes pensamentos, deparei-me junto a um local propício para se pensar em morte, o cemitério. Porque não, pensei, e assim, adentrei, e perguntei para um funcionário sobre a lápide de Jesus Alcântara Machado, que ficava algumas quadras abaixo. Não tive dificuldades para encontrar a enorme lápide em mármore, com adornos suntuosos em dourado, alguns vasos de crisântemos e cravos, a inscrição de um excerto de um evangelho que agora não me recordo, mas que remete, em seu todo, à volta infalível de Jesus. Porem, mais que a apolíptica frase, assustou-me a foto em preto e branco, insculpida no belo mármore, ao lado dos cravos, o semblante sereno de Jesus Alcântara Machado. Assustou-me não sei por que, e isso foi causa ainda maior de assombro, olhei para a figura, certamente conhecida, certamente das TVs, dos jornais, das fofocas, todas remetidas à fábrica e ao acidente, mas nada disso é aterrorizante. Mas o que pode ser aterrorizante então, questionei-me, tentando recapitular os pensamentos, organizar algum arquivo guardado e esquecido pela memória, o porquê do arrepio diante de coisas elementares, o mármore, a réplica do ouro nas letras e na citação do evangelho, mais embaixo um corpo já decomposto, já devorado pela terra. Jesus morto, a apregoação de sua volta, a sua memória contada por um sem nomes e sem histórias, é possível que isso possa arrepiar algum adulto normal, sem fobias, sem fraquezas de pensamentos, questionei-me mais uma vez, e não pude me responder ali, os olhos duros de Jesus me perscrutando pela lápide. Deixei o cemitério quase correndo, com um medo desconhecido, um medo dos mortos que eu julgava não ter, a imaginação volvendo-se e misturando-se com a memória, com os rostos conhecidos, com os antigos falecidos, todos, como que estivessem prontos para levantar de suas tumbas, não como insurrectos, mas como se, de um dia para o outro, não existisse mais diferenças entre a vida e a morte, entre os que estão aqui e os que estão além. Corri, da forma e pelo tempo que meu corpo permitiu, atravessando tumbas, de crianças, quase bebês ainda, que choravam, não a morte porque não a compreendiam, já que viveram sem saber da existência desta palavra, de jovens, vitimados por acidentes ou doenças, antes de seu tempo natural, adultos, idosos, que amaram longamente a vida e conseguiram cumprir todo o seu curso, e me chamavam já, dizendo-me talvez para não me assustar com o que, dentro de tempos, acabaria por ocorrer em mim também. Corri, calado, fechando os ouvidos para não ouvir tantas vozes da morte, de tantos familiares, amigos, conhecidos e, mesmo dos desconhecidos, porque a voz das tumbas soam iguais, dos amigos e dos desconhecidos, do empresário Jesus de Alcântara Machado, ou de um de seus muitos serviçais. Corri até onde pude, não muito longe, mas já fora da circunscrição dos mortos, assustado pelo facto de, pela primeira vez, os mortos se esquecerem desta sua condição peculiar, que é justamente a ausência daquilo que me move a falar, a pensar e a escrever estas linhas, que é a vida. E, por instinto, deixei o local em que estão nominados todos os mortos e cheguei ao local em que estão demarcados todos os vivos, o Registo Civil, ainda sem esquecer o ocorrido, e lá, pulando as palavras, a ausência de uma explicativa, junto à forte respiração, perguntei ao funcionário que, de forma literal, tem como ofício guardar a vida, com os respectivos factos importantes dessa, como o casamento, o divórcio, a paternidade, e a morte, com as únicas conseqüências palpáveis que advém desta, a herança, a transmissão das dívidas, o testamento, que me mostrasse o registro de Jesus de Alcântara Machado. Este me escutou mecânico, não me reconheceu, não reconheceu certamente o empresário falecido em um terrível acidente, para ele, corretamente, um nome é sempre um nome, vivo ou morto, indiferentemente, e assim saiu, fora do alcance da minha visão, por entre as grandes colunas de nomes dos vivos que parelhava-se com a coluna também colossal do nome dos mortos. Não sei que método de arquivologia utilizou, não sei que critérios tão eficientes este funcionário teve, ao apenas escrever o nome do empresário em um papel e sair, por todos os nomes, pelo labirinto de informações de todos, e me encontrar justamente o pedido, mas o facto é que isso muito me impressionou, pela eficácia, pelo pouco tempo, daquela terrível busca. Demorei-me, trêmulo, com o papel que continha a vida e morte do empresário sem coragem de abri-lo, antes presenciara já um pequeno milagre, que me pareceu o simples achado da pessoa que eu queria pelo funcionário e, durante aquele pequeno momento, comparei-o a um bibliotecário, que deve conhecer todo o universo contido nos livros postos a sua guarda, com a diferença que meu funcionário cuida de histórias menos poéticas, porém mais reais, comparei-o com o labirinto do Minotauro, em que há a vital necessidade do fio de Ariadne para lembrarmos de nossa procedência, e comparei-o com Deus que, se mesmo existisse, segundo os livros sagrados, deve ter um labor parecido, sempre a olhar e catalogar fichas, que somos nós, indistintamente, na vida e na morte. Para maior surpresa, não constava na ficha do empresário a sua morte, ocorrida alguns meses antes, Que significa isso, perguntei, Porque aqui não consta a morte dessa pessoa, Significa que ela esta viva, Como, a morte deste aqui é facto ocorrido e conhecido por todos, Digo, significa que, formalmente, esta pessoa está viva, não me creia mal senhor, com tanto trabalho e tanto tempo neste labor, chega o inevitável momento em que estas fichas são as únicas testemunhas e únicas fontes de minha verdade, Mas se esta pessoa, cujo registro tenho em mãos, morreu, porque motivo não se consta aqui sua morte, esse não deveria ser o processo natural, Deveria, és o fato natural, mas essa pergunta que me fazes não-lho posso responder, Porque não queres, Não, porque não sei, não vês que perguntar para um simples funcionário do registro civil o porquê da inexistência do registro de sua morte é o mesmo que olhar para os céus e perguntar, Ó Deus, porque mataste ele.
Com esse funcionário, descobri que o responsável por encaminhar a prova do óbito para o Registro era incumbência do médico legista, responsável pela averiguação dos motivos da morte, mas esse facto era apenas uma informação burocrática e que já tinha pouco importância, o que realmente me valia naquele momento era saber que o empresário falecido estava vivo, pelo menos no Registro Civil, ao menos que fosse por um descuido humano, de encaminhamento de informações, ou ainda um negligente esquecimento de se apontar na ficha, Este morreu, como Deus deve, em certas ocasiões, também negligenciar ou esquecer, permitindo vidas ceifadas antes da hora, ou pessoas esquecidas com longa vida aqui na terra. Andando pelas ruas, entre vidas e nomes, um sentimento novo surgiu, um sentimento feliz, que respondia minhas indagações do dia da reunião do partido e, por esse motivo, decidi ir ao médico legista, para ouvir de sua boca os motivos pelos quais não se constava a morte do empresário. Estes devaneios apenas saíram de minha cabeça quando escutei um mendigo com um cartaz apoliptíco e gritando, Jesus vive, pelo que parei, olhei e o respondi, Está certíssimo, nunca disse coisa tão certa em sua vida, e ele, Isso irmão, certamente aí vive um coração contrito, não nos demoremos mais no pecado, busquemos Jesus, e eu, Sim, é isso que faço exatamente nesse momento, e ele concluiu, Vá em paz então, quem busca Jesus, busca a vida eterna. Com essa benção parti, embora não tivesse pretensões tão altas e embora em meu ínterim soubesse que nossos sujeitos eram diferentes, mas mesmo assim as coincidências vieram a calhar e, posso dizer agora, devo ser uma das poucas pessoas que já foram conversar com o médico legista sobre a terrível morte de fulano e mesmo assim radiante de felicidade. Nem mesmo o pesado ambiente do Instituto de Medicina Legal alterou meu animo, nem mesmo quando me foi permitido entrar, pelo ambiente escuro e por entre aquelas gavetas, que continha cada qual o seu nome e, dentro, um corpo sem vida. Sem cerimônias perguntei ao médico, quero que me diga o que sabes da vida de Jesus Alcântara Machado e, com essa pergunta, ele se assustou, embora seu rosto não tivesse ficado lívido como o do Porteiro e como o da Mulher do Piloto, que não estavam habituados a falar da morte e, assim me disse, Venha para dentro e te direi tudo o que sei. Segui-o para dentro do Instituto, para salas geladas, com muitas gavetas, cujas identificações eram feitas da maneira singular A-2, J-8, ou K-9, por exemplo, e me deparei com alguns corpos, uns em perfeita conservação, como se apenas repousassem um sono tranqüilo e efêmero, outros já com sinais de decomposição, outros ainda mutilados, vitimados talvez por acidentes, como o que ocorreu com meu procurado. Espero que não estejas assustado com todos esses corpos, disse ele, Não me assusto não, tenho mais medo dos vivos, respondi eu, O quer dizer com isso, perguntou ele, parando e olhando directamente para mim, Ora, quero apenas dizer que tenho mais medo dos vivos, porque estes sim podem me fazer algum mal, ao contrário desses corpos que não podem me alcançar, de toda forma o que disse foi apenas uma frase, dessas já prontas, não me leve tão a sério, Ah bom, disse-me, ainda contrafeito com minha presença e com aquele diálogo. Por fim, abriu uma porta, que desembocava em uma sala circular, extremamente branca e extremamente iluminada, sala esta simples, com um armário, contendo alguns utensílios próprios da profissão, como bisturis, facas, amoníacos, formol, linhas de costura, e um circulo giratório central, menor, que era a cama dos corpos que ali passavam, e ainda umas três ou quatro cadeiras, espalhadas pela sala. Diga-me, o que queres saber da morte de Jesus de Alcântara Machado, corrigi-o, Quero saber da vida de Jesus de Alcântara Machado, Como assim, não sabes por acaso que ele morreu em um acidente aéreo, Sei, como todo mundo sabe, mas sei mais, sei que no Registo Civil consta que ele vivo está, da mesma forma que eu e você, E quem é o senhor para querer saber essas coisas, um parente ou amigo, Não, não sou nada, mas acho que não seja ilícito, pelas leis de nosso País, ou ainda imoral, por nossas normas consuetudinárias, que alguém tenha curiosidade de saber sobre a vida e morte de alguém, mesmo que esse alguém seja desconhecido, a vida e a morte, esses dois fatos elementares, não são como a privacidade ou os dados bancários, que são sigilosos, mas são sim públicos, Não importa, queres saber algo que não te pertences, velho, vá chorar teus próprios mortos, deixe os outros em paz, Não pertences a mim nem a você, como também não nos pertencem nenhuma morte, nem a nossa própria, Creio que posso dizer que tua morte me pertence sim, sabes que está velho, talvez não dure um dia ou uma década, lembre-se deste lugar, olhe bem para esta sala, já a que próxima vez que aqui estiver, abrir-te-ei e o costurarei, sem dó, sem piedade, teu corpo me pertencerá, por alguns momentos, Pois então como benevolência, diga para este velho, que daqui algum tempo terás, se tu também teve por alguns momentos o corpo de Jesus Alcântara Machado, És insistente e te direi, embora nada poderás fazer, tua própria morte já se avizinha e creio que seja melhor te preocupar com esta. Com o coração palpitante, talvez pela praga, talvez por saber a verdade, escondi minhas mãos, suadas e tremulas, fiz-me silêncio e apenas escutei a voz raivosa do médico legista, que não parou um segundo de mexer nos bisturis da mesa circular, Quem morreu no acidente foi o piloto e não Jesus, o corpo que aqui esteve foi do piloto e, no velório, com o caixão fechado, ninguém pode saber que aquele não era Jesus, que sua morte fora uma farsa, Mas porque fizeste isso, Após o acidente, um corpo foi encontrado e trazido para cá, ainda não identificado e pouco tempo depois, recebi a visita do sobrevivente que contou em prantos sua terrível história e sua falência, dizia ele em um convulsivo choro que deveria ser o morto e não o piloto, porque, se fosse ele quem tivesse sucumbido, ao menos a família ganharia o dinheiro do seguro de vida, que seria vital para a fábrica, E assim ele pediu para que trocassem, Não, não pediu, eu que sugeri, para mim pouco importa quem morreu ou quem vive, só troquei os nomes e cuidei para que não investigassem a vida do piloto, por que assim descobririam a verdade, menti para a esposa de Jesus e para a esposa do Piloto, Por que, perguntei atônito, Por que esta foi a notícia que mais os agradou, respondeu-me, sem culpas, A esposa do empresário continua sua vida, pode ter certeza que, para ela, assim como para Jesus, a morte foi uma forma de manter a honra e o poder de seu sobrenome, ao contrário de sua vida, que seria motivo de risos, e a vida do Piloto, ao menos para a Mulher deste, é mais reconfortante do que a morte, não importa se esta vida seja longe, seja separada de sua própria família, Não posso ter toda essa certeza, respondi e, em seguida, perguntei-o, Achas mesmo que as duas famílias não sabem o que ocorreu, Não posso adivinhar o que se passa na cabeça dessas esposas, o que cuidei foi apenas de dar a notícia, se elas não acreditaram, fingiram muito bem.
Sai do Instituto Médico Legal com a confirmação de que minhas evidências estavam corretas, as quais rememorei caminhando enquanto saia do local e que agora posso falar, para que saibam todos o raciocínio que me ocorreu. Primeiro, uma morte bem vinda, de um empresário falido, recoberto de dívidas, de credores, de injurias e uma exorbitante quantia paga pelo seguro de vida, feita ainda nos tempos em que reinavam as bolachas da família Alcântara Machado, como pude confirmar por jornais e, ainda, ao olhar a imponente fábrica, perfeitamente adaptada aos novos tempos, às indústrias modernas e estrangeiras , segundo, o estranho caso do Piloto, que não mais retornou para casa depois do acidente, o acidente que vitimou seu patrão e que, possivelmente, o traria muitas complicações na justiça e na polícia, se fosse comprovada a sua negligência no pouso fatal, terceiro, o facto da evidência deixada pelo médico-legista, O Sr. Jesus está presente na casa dos mortos, uma vez que seu nome, sua foto e toda a sua memória estão encaixotados em uma lápide de mármore muito fina e, no entanto, não deixa de viver, ao menos nominalmente, já que, no registo Civil, assim consta que é – vivo. Com esse conjunto probatório, regalei-me, como um desses fantásticos detetives que detêm perspicazes e tenazes linhas de raciocínio, mas meu orgulho durou pouco, talvez frações de segundo até eu me dar conta que não era tão perspicaz assim, um outro elemento bem mais pueril havia influenciado em meu raciocínio. Para acabar com meu pequeno mistério, havia alguma coisa a ser feita e decidi fazer naquele mesmo momento, logo após ter minha vida maldita por aquele que será certamente o açougueiro do meu corpo - decidi ir novamente ao cemitério. E fui, com a esperança que logo se transformou em realidade, não mais me espreitavam os corpos da morte como outrora, não mais escutavam vozes familiares e desconhecidas, gritos de jovens e lamúrias dos velhos, gritos embrutecidos dos homens e choros sentidos de raparigas em flor, tudo era silêncio, tudo voltado ao seu estado natural, as moléculas, segundo a segundo, transformando-se na terra, retornando ao seu estado primitivo, neste seu incansável ciclo, para outra vez formar corpos de bebês chorosos, de torrentes cíclicas ou de plantas pouco duradouras. Tudo, todos, deixando a cada segundo de ser o que foram, cada vez mais distantes do nome constante da lápide a poucos metros, que serve de lembrança aos que continuam vivos, mas nada significa para os que estão mortos, é um nome, como “Cão”, “Vida”, “Baralho” ou mesmo os terríveis como “Suicídio”, “Enchente”, “Peste” ou “Morte”. Com estes pensamentos, parei, pensei, Os nomes são pouco importantes, pouco importa eu chorar diante do túmulo de Jesus ou de Fulano ou Beltrano já que agora são todos iguais. Mas para alcançar o propósito que me levara ao cemitério, era necessário ir ao féretro onde devia estar os restos mortais do empresário que não morreu e a este fui, lentamente, o caminho decorado, a certeza do que encontraria pela frente. Olhei a foto do empresário, a foto certamente dos bons tempos, do auge das bolachas, a foto colorida, com o cabelo ainda escuro, o riso ainda largo, ainda sem pés de galinha ou rugas, sem a expressão de cansado e sem as olheiras escuras, características estas que ficaram marcadas em todos os jornais, no dia em que o avião caiu. Mas o cerne de tudo aquilo era outro, além de se estar contente ou triste, velho ou novo, bem conservado ou putrefado, era sim, quem era aquela pessoa, definitivamente, e o era a foto e aquele que, nesse momento, apertou meu ombro, o Barbudo sem nome. Como estás, Jesus, saudei-o pelo nome que lhe foi dado na pia, Não digas isso, respondeu-me, Essa pessoa morreu e seu esquife está diante de nós, não estás vendo, Estou, mas essa pessoa não morreu, Não, retrucou-me, Mas como é que aqui estás então, Essa pessoa se suicidou, o que é diverso, Pelo que sei, essa pessoa morreu de acidente de avião, um acidente que, segundo informações oficiais, ocorreu por problemas mecânicos e, por tudo isso, creio que não possa nominar essa morte de suicídio, mas sim de fatalidade, Não importa o nome que queiram dar, você nunca leu um livro meu, Não, porque, Porque simplesmente divirjo da história oficial, sempre acreditei que a verdadeira história, atrás da história contada, tem mais poesia, Pois essa não deve ser contada, não tem poesias, mas sim lágrimas, As lágrimas sempre contem poesias escondidas, camarada, mesmo o de uma pessoa que decidiu matar a si próprio e não creia ser isso um suicídio, Não me matei de verdade, já que aqui estou, Não, como tu a pouco me disse, Jesus está morto bem aqui, na frente de nós, você é outra coisa, distinta, inominada, e a ti pergunto, o que és, Sou aquele que sou, como já escutei do evangelho, sou o nada, a ausência de caráter, de vida, de família, de amigos, vivo perambulando entre círculos, minha barba desgrenhada e minha magreza não permitem que me reconheçam de pronto, com o passar de um certo tempo, deixo o círculo, para que não reconheçam meus traços e para que eu mesmo não possa me trair, Como daquela vez que te insultaram, perguntei, Como daquela vez que insultaram Jesus, respondeu, Eu devia me desapegar completamente da pessoa que fui, do empresário bem sucedido, das mulheres sempre ao meu redor, dos muitos risos dos outros, das coisas que o dinheiro sempre consegue comprar, mas não, as vezes esqueço-me que não sou nada, e me traio ou choro, com saudades do passado, Tens saudades do passado, Quando esqueço o que sou, tenho, quando me recordo, não, o Nada não pode ter lembranças, logo não pode ter saudades.
A extensa conversa apenas acentuava o cansaço que me acometia, as grandes caminhadas, as maldades ditas pelo Médico legista e a última coisa que eu queria escutar eram justificativas de alguém que se matara, as razões do suicídio, o pensamento focado na fábrica, no bem estar da família, etc., etc., e assim tratei de me despedir, Se és nada, creio que seja melhor não conversarmos, aos outros deve ficar feio este monólogo de um velho no cemitério, creio que me darão por senil e débil, Faça como queres, com a condição que nunca reproduza o diálogo que travamos, O monólogo que travei, caçoei, Se reproduzido, será incompreensível e sem sentidos, pode ficar tranqüilo. Ele riu ou eu assim fingi acreditar, e disse, Vás, esqueças de mim, se lembrares, lembra apenas de minha memória, porque é apenas isso que sou, És o nada, corrigi-o novamente, És como tudo aqui no cemitério, apenas matéria orgânica, és nada e, contradição, és Todos os Nomes que neste cemitério constam, Não te julgues muito superior, porque tem um nome, e porque assim as pessoas o chamam, seu futuro será este e algum dia, estaremos aqui, lado a lado, não importa, não importa se hoje és importante, porque um dia também o fui, não importa se tem amigos, por que um dia também os tive, não importa se hoje te chamam José, Saramago que seja, por que um dia também me chamaram Jesus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário