segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

pós-escrito - Chokmah


Ler Saramago é a oportunidade única de ler um Nobel sem tradução. Literalmente, já que o Escritor português não autoriza as alterações da grafia oficial do português luso para o oficial português brasileiro, que vigiam até pouco tempo e que serão unificadas após a carência do recém assinado acordo gramatical.

Já escrever como Saramago é uma experiência nova, mesmo para um assíduo leitor dele. É como dirigir um carro em alta velocidade, atento a todas as proibições, a todos os carros em sentido contrário, a todas as sinalizações de pare, de contramão, de lombada, e passá-las, para fazer seu próprio trajeto. É como – para parafrasear o Al Pacino, em Perfume de Mulher – dirigir uma Ferrari, sendo cego e sendo apenas guiado por alguém ao seu lado. Explico: é utilizar a palavra, utilizar a highway de um pensamento longo, de uma linha de raciocínio, até o seu cabo, passando reto por vírgulas, por ponto e vírgulas, por pontos finais, por travessões, por aspas, pelo senso comum da pontuação, pelas indicações de fluxo de consciência, pela normalidade de se indicar uma fala, um pensamento, uma ação. O resultado, para um leitor iniciante, é algo mais ou menos monstruoso. Insistir nesse monstruoso caminho leva a resultados sempre fascinantes, que são toda a obra do português. Com algumas páginas, já se está totalmente habituado ao modo de falar dos personagens, ao modo dos mesmos se locomoverem, agirem, ao fluxo de consciência, ao modo com que o autor vai nos inserindo ao seu mundo - um mundo comum, inominado, em que, invariavelmente, algo estranho, inexplicável vem a ocorrer.

Um elemento inexplicável em uma sociedade padrão e os desdobramentos decorridos deste, eis uma síntese da prolixa obra do autor. O elemento inexplicável é diverso: uma cegueira, uma explicação heterodoxa de uma verdade considerada universal, um continente que se desgarra, uma morte que se recusa a vir. O que se segue, os desdobramentos decorrentes desse elemento inexplicável somam-se ao caráter teratológico (créditos ao Guto) que caracterizei acima sua gramática e sua estrutura narrativa.

Aqui, abre-se espaço para “a verdade, contada por elementos não oficiais”, um dos temas recorrentes de José Saramago. O Evangelho Segundo Jesus Cristo não só é abominável por ser uma versão humanizada de um homem, a quem atribuímos ser filho do Homem. É abominável pelo fato de divergir de uma história contada, repetida até a exaustão até que se torne verdade incontroversa, ou o que o Direito Processual Civil costuma chamar de “fato notório”, com presunção iure et de iure. O novo tende a ser abominável por divergir do que conhecemos como verdade: ainda mais se o novo for uma versão narrada por um ateu sobre o acontecimento principal do Cristianismo.

Ressalte-se sobre as possíveis influências que deram origem ao Evangelho: a queda do muro de Berlim, o esfacelamento do comunismo são sempre ligadas ao escritor comunista e sua versão humanizada de Jesus Cristo. A versão que aqui se propõe não se altera muito: uma história de um certo Jesus, que cresceu e sucumbiu comercializando bolachas. O seguinte trecho:


“A globalização teve o mesmo efeito que se qualquer totalitarismo tivesse ocupado todo Portugal e assim dissesse, Olha, tuas bolachinhas já não são mais queridas por nós, que agora detemos o poder, e este sabor caramelo, a partir de então, será considerado subversivo ao sistema imposto. E tudo isso porque, pelas vias de facto ou de maneira sutil, o resultado foi o mesmo para Alcântara Machado, foi o de simplesmente a ordem vigente dizer, Não comercializes mais tuas bolachinhas porque não queremos”


retirei de uma entrevista a Saramago a alguma emissora de TV, em que informa que muitas vezes os efeitos da globalização são silenciosos, mas tão perversos quanto o de qualquer sonho mal de um ditador, seja latino americano, seja oriental, seja europeu.

A busca por Jesus por um ateu é um paradoxo, uma verdadeira aberração, tanto quanto a morte deixar de existir ou uma idade inteira ficar embebida de cegueira branca.

Já a vivência e a ausência foi o mote de “Todos os Nomes”, livro que, segundo conta a verdade dita como oficial, Saramago dedicou a um irmão morto. Este, autor e narrador, brinca com os conceitos de vida e morte, alterando-os da maneira que nos é possível alterar, o Assentamento no Registro Civil, uma inscrição errada no cemitério, coisas do tipo. Aqui se cria um outro propósito do livro, qual seja, a vida ou a ausência da vida de Jesus, (Do Alcantara Machado e não do Nazareno) a busca por informações de Jesus, das razões de sua morte, das inscrições que temos de fato – sua lápide e sua foto no cemitério – e de direito – o registro averbado no registro civil. Se Jesus existe ou não, se é humano ou não, não sabemos mais que nos contam os Evangelhos, os Registros, as inscrições em Bronze e as tantas monstruosidades escritas por José de Souza Saramago.

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