segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Gevurah

Soube, espantado, por meio de um sectário, pessoa virtuosa, da existência de uma Sociedade Secreta que, em nossos dias, revive a mítica sociedade que teve início com Christian Rosenkreuz e que atravessa os séculos pelas sombras[1].

Soube da existência da Sociedade há quase duas décadas – e, aparentemente, sobre a certeza desta data, não me deixo trair; apenas o espaço se transmuta na Sociedade; é diminuto e representativo do Universo. O tempo não. Este segue a mesma caótica ordem do mundo profano.
Nesta época, não sabia, mas já intuía que todas as Sociedades – não obstante sejam distintos seus propósitos – partem de preceitos comuns. O rol desses preceitos é extenso já que nada inventa, mas copia dos relacionamentos humanos do universo; por isso, sou incapaz de exauri-lo. No entanto, já fatigado de tanto rememorá-los, lembro mecanicamente algumas características, que me acompanham nestas últimas duas décadas: primeiro, a comparação da Iniciação na Sociedade com o nascimento. Segundo, o sentimento – explícito ou não – de fraternidade entre os sectários, necessário para criar um vínculo a mais, que os difere do mundo exterior. Terceiro, um propósito comum, muitas vezes de cunho altruístico, muitas vezes apenas egoístico.
Presenciei, vivenciei estes preceitos, quando na minha Iniciação. Desta, saí orgulhoso, um novo mundo a minha frente, um nome me foi dado[2], irmãos me cercavam em bajulações e interesses comuns.
O fim comum de minha Sociedade era árduo; honradas pessoas reunidas para alcançar o máximo de poder no mundo profano e concatená-lo para um objetivo de melhorar a existência do homem. Estas pessoas eram tão distintas quanto honradas; médicos, políticos, magistrados, engenheiros, geólogos; os mais influentes, os mais eficazes do mundo profano, juntos, discutindo as mesmas coisas.
Meu primeiro sentimento não foi nada altruísta, mas sim, pra minha vergonha, um tanto quanto egoístico. Saber que – por eu me destacar em minha profissão – eu fora chamado a participar de uma sociedade que reúne os melhores em cada área me deu uma euforia peculiar. Saber que eu encontraria com aquelas pessoas fora de nossas secretas reuniões e, todas as vezes que eu as encontrasse, um secreto e silencioso vínculo entre nós seria determinante me passou pela cabeça – e disso, pensar que eu poderia conseguir vantagens por ter um vínculo silencioso foi inevitável.
Mas logo tratei de expulsar estes pensamentos. Tal pessoa que pensa em si e em vantagens pode ser aquele – que fora gerado por seus pais e que era conhecido por outro nome – mas não o homem que foi batizado como Johann e que agora sou eu, plenamente, desde meu nascimento na Sociedade. Assim que destinei minha vida – minha profana e mundana vida – a satisfazer minha existência verdadeira, feita por mim, por meus irmãos e por sentimentos semelhantes e nobres, enchi-me de alegria, de força na vida e em Deus.
Outra importante característica que olvidei e que existe em todas as Sociedades é a existência de castas. Particularmente, a Sociedade preocupou-se com tantos cargos figurativos, com tantas nomenclaturas prolixas, que hoje já não as posso pensar com certa ironia. Guardião do templo, Mestre real do segredo, Antigo guardião do Secreto Baú, Vingador dos idos de Junho. Os nomes todos tinham correlação com fatos pretéritos e que se ligavam de algum modo a histórica fraternidade Rosa-Cruz. Quando adentrei na Sociedade, embora fosse vexatório, não pude deixar de observar (e invejar) os mais velhos – os que detinham as posições mais influentes, os que tinham mais poder de convencimento. É importante ressalvar que a vida profana, embora necessária para selecionar os membros, não mais influenciava em nada na Sociedade. A importância de um membro se mede exclusivamente pelos seus méritos internos e isso apenas reforça o mito que a Iniciação se equipara a um nascimento, já que não existe nada anterior a este. Nos anos que permaneci na Sociedade, não raras as vezes vi importantes pessoas do mundo profano terem suas idéias preteridas a de outras pessoas menos notáveis [3]. Por isso, invejava as lideranças, as pessoas poderosas da Sociedade, as que tinham cargos com nomes extensos e significados - ao menos aparentemente – muito profundos. Invejava-as e queria imitá-las, seus trejeitos, seus outrossins, suas pequenas particularidades da voz, do tom, das mãos enquanto falavam; isso tudo por que elas significam o poder de uma sociedade de poderosos, significam ser o destaque entre os destaques, todos aqueles homens, com fins e pensamentos tão nobres.
Do pensamento que existe castas entre os sectários, um outro pensamento se torna inevitável, imperioso: o de que existe, dentre as castas, uma que comandará todas as outras. Este, que detém o símbolo máximo do poder, encontra seus limites apenas em um grupo de três ou quatro decanos, velhos ilustres e figurativos membros da Sociedade. Estes já compuseram o quadro há muitos anos e agora apenas são membros alegóricos – ou ocultos, como queiram. Não participam das votações, não participam das decisões efetivamente. Mas se sentam ao lado da cadeira do Guia máximo – que é mais alta, para sempre rememorar a existência da casta – e são efetivamente os responsáveis pela decisão final, no caso de dúvidas e de injustiças. São, dentro da Sociedade, o Judiciário, para sanar os problemas supervenientes e o legislativo, para ditar novas regras, que devem ser cumpridas compulsoriamente.
E, para chegar ao cargo máximo, o cargo de Guia, particularmente, vivenciei uma importante mudança na Sociedade e que é necessária para a exposição do propósito destas linhas.
No começo, apenas existia a tradição. Os mais novos reconheciam nos mais velhos uma vivência maior, necessária para a direção da Sociedade. E, nos mais velhos, naqueles que participavam da Sociedade por mais tempo, os que se destacavam invariavelmente se tornavam guias. Os guias eram reconhecidos, dentre os demais, simplesmente. O sufrágio existia e era tácito. A simples aquiescência era determinante para escolher aqueles que teriam o poder de decisão.
No entanto, há uma década mais ou menos, um acordo entre lideranças foi rompido; para evitar um confronto direto, uma das lideranças abriu mão para outra, com a condição de ser a próxima a ser Guia. Tal fato foi chancelado pelos decanos e se tornou norma tácita na Sociedade, como comumente ocorria. Foi então que o Guia escolhido, quando de sua saída, apoiado dos decanos, preteriu a liderança que abrira mão, e apoiou outro homem. Pela primeira vez, houve a formação de distintas chapas pleiteando um cargo e a conseqüente votação para o cargo máximo na Sociedade. Os decanos, sorumbáticos e barbudos, reuniram-se e, em sua vasta sapiência, decidiram não poder negar a existência de uma forma tão democrática de eleger os guias, como o é a votação.
A votação de fato ocorreu e os votos apenas demonstraram o que já ocorreria sem a votação: a liderança, apoiada pelos decanos e pelo então Guia foi eleita; o sectário preterido uma vez foi preterido novamente, e o acordo verbal que antes possuía para ser o Guia agora não valia absolutamente nada. Todos os que votaram no guia eleito foram recompensados com cargos e distinções importantes. Depois, descobriu-se que este acontecimento não foi uma recompensa pela votação – mas sim o pagamento de uma promessa e que a entrega de cargos era a contraprestação superveniente. O líder preterido e os que votaram nele foram cassados e tiveram sua honra deturpada. Eu fui essa liderança preterida, mas juro que senti mais por meus companheiros do que por mim mesmo.
Esta talvez seja a informação central destas desventuradas linhas: não o escrevo vingativamente, não açoito as lideranças eleitas e a sucessiva linhagem que desta se originou, não menosprezo aqueles que foram eleitos pela maioria. Apenas quero que fique registrado que este foi o momento que, na Sociedade, nasceu ou foi descoberta uma característica que é inata no homem e que é inseparável deste, mesmo em uma ideal Sociedade de irmãos: a tendência à divisão, a união por interesses, a afinidade por grupos, a busca pelo poder, por mais que se diga ou propale o contrário. A primeira votação teve conseqüências consideradas pelos idealistas – os que pregam os ideais plenos da Sociedade, os que pregam a idiossincrática idéia da fraternidade – como catastróficas. Eu, embora perdedor, sempre considerei essa votação como denunciadora da nossa condição de homens, mesmo vivendo nesta utópica Sociedade. Após a votação, dois grandes grupos foram formados. O daqueles que detinham o poder, os que eram comandados pelo Guia da Sociedade, e nós, que éramos guiados por mim, a liderança preterida, o perdedor da votação. Pouco a pouco, todas as nossas ações ganharam tonalidades subversivas à Sociedade e todas as nossas falas lentamente se tornaram vermelhas, inflamadas, conspiradoras. Isso por que o grupo inimigo se confundia com a própria Sociedade, já que a comandava, com a aquiescência dos decanos. Pouco a pouco, por sermos a oposição, tornamo-nos rebeldes, personas non grata, subversivos ao sistema. As eleições seguintes apenas confirmaram o destino que nos foi imposto: a humilhante derrota, a honra lastimada, a condição de sermos os errados, os rebeldes. Assimilamos mais uma vez a derrota e tomamos como nossa a alcunha jocosa que nos deram. Diziam-nos, jocosamente, que éramos revolucionários. Tornamo-nos por opção o grupo revolucionário – não por que tínhamos este ideal, mas apenas por ser pilhérica essa nomenclatura que nos fora dada. Brincávamos de acender charutos cubanos em reuniões próprias, brincávamos de ser a esquerda ululante, brincávamos com o comunismo, com o jacobinismo, entramos no espírito sectário da Sociedade; enfim, criamos uma sociedade dentro da Sociedade, tão alegórica e figurativa como esta; uma sociedade criada apenas pela afinidade, dentro da Sociedade que se propusera a albergar os nobres do mundo profano. Nas próximas eleições, afastei-me do pleito. Decidi que eu seria mais eficiente apenas organizando a estratégia de nosso grupo. Como eles, comprei votos, vendi ideais, propalei nossa superioridade; tudo pela busca ao poder, o nosso fim, o fim de todos nós. Mais uma vez fomos os perdedores. No maniqueísmo simplório que fazem da vida – e da Sociedade – já estávamos marcados: fomos eleitos o mal, o câncer a ser combatido, por que o grupo dominante só pode ser sinônimo do bem. Todos os novos iniciados eram alertados da parte podre da Sociedade, daqueles que deveriam ser isolados, até o esquecimento. Nunca me incomodei em ser considerado a liderança dos rebeldes; apenas me machuca a falta de inteligência dos meus inimigos, que não percebem que ser bom não é causa, mas sim a conseqüência de ser a ordem do sistema, de ser a direita. Fosse, algum incerto dia, nosso grupo a ordem, trataria eu também de elegê-los os subversivos, os que devem ser combatidos e, subseqüentemente, esquecidos, nesse errado maniqueísmo que nos governa, mesmo sabendo que apenas tenho eu interesses diversos dos deles.
Nesta época, na Sociedade, já eram todas as palavras minhas condenadas, antes de eu as dizer. Julgavam-me meu próprio ser e não minhas atitudes; condenavam-me a existência e não minhas possíveis penalidades. Por isso, decidi me isolar do grupo; pensei por noites insones e tal pensamento dilacerou meu espírito, dilacerou o que restara de Johann em mim. Seria, em meu triste ocaso, considerado um perdedor, um suicida. Mandaria uma carta e, solenemente, pediria meu afastamento. Todos os meus inimigos, todas as pessoas do outro grupo ririam de mim. Os meus, os que viam em mim a liderança natural, os que enxergavam em minhas palavras verdades (que eram as verdades apenas de nosso grupo), decepcionar-se-iam. Eu, aquele pelo qual eles tanto haviam lutado durante anos, de uma hora para outra, abandona a Sociedade, abandona os seus. Tornar-me-ia uma piada para ou outros e um fraco para os meus. Mas, mesmo assim, decidi pedir o afastamento. Eu já não ajudava mais em nada. Eu era subversivo, independente do que fizesse; e todos que andassem comigo, todos que me seguissem, já levariam o crivo de subversivos. Decidi que permanecer denotaria apenas um capricho, enquanto afastar seria determinante para o sucesso dos meus aliados.
Nunca consegui sair, por que nunca permitiram que minha memória fosse esquecida. Os fatos subseqüentes ao meu pedido formal de esquecimento são recentes e tão dolorosos quanto as derrotas nas urnas, que eram motivadas por compra de votos e pela crença de que éramos perturbadores da ordem. Sectários mais recentes, sectários supervenientes a minha saída continuaram com os ideais de nosso grupo, continuaram tomando para si jocosamente a idéia de que eram jacobinos. Neste momento, mesmo com minha ausência, todos esses novos membros foram taxados e marcados pela minha negra influência. Estes não se deixaram abater e pouco a pouco se tornaram maioria entre os de nova geração – os que representavam o futuro da Sociedade. Tudo descobri curioso e divertido. Longe, afastado, eu me tornara mais influente e importante do que nas prolixas reuniões, nos longos discursos que eu me propusera a fazer nas reuniões. Os dirigentes logo trataram de ceifar o mal, antes que se proliferasse. Primeiro, um grupo de influentes pessoas na Sociedade foi conversar com os iniciados rebeldes, tentando dissuadi-los daqueles maléficos ideais. Depois, após o fracasso da missão, um importante decano foi responsável por reunir os novos; disse o decano que deviam os iniciados largar das más influencias ou seu futuro estaria seriamente prejudicado no grupo; se eles não mudassem de idéia, nunca poderiam aspirar os altos cargos da Sociedade. O decano, mesmo difamando minha memória, não os dissuadiu e eles foram marcados com o sinal do mal, com a pecha que um dia também me foi dada. Para os inimigos, morto, valho mais do que vivo. Tornei-me um Che Guevara e meu fantasma todas as noites assusta os centenários decanos que comandam a Sociedade. Quando soube da ingerência do decano nos iniciados, senti primeiramente pena destes. Em absoluto, não gostaria de ver minha mácula tomar conta de ninguém; não queria que eles tomassem para si um fardo que era meu, e que era desnecessário. Depois de um pouco pensar, senti raiva e desprezo pelo decano. Que atitude reprovável e covarde para um sapiente consultor de uma Sociedade dos mais justos e nobres homens de todo o mundo. Que gesto é esse, senão o que denuncia que os ideais há muito não existem, senão formalmente. Como alguém pode em alto e bom som contestar minha honra em minha ausência?
Aos que imaginam ser estas prolixas e ressentidas linhas de um perdedor, justifico-as, com a própria razão do universo. Vale menos a minha derrota do que a posição que ela ocupa no universo. Infelizmente, incluo-me no rol de inimigos, daqueles que são considerados subversivos ao sistema vigente e, por isso, necessitam de punição, pelo simples fato de existirem. Não sou o único e nem o primeiro. Isso porque, em diferentes graus, todas as Sociedades elegeram seus inimigos, de modo que eu apenas faço parte de um infausto e imemorial rol, tão antigo quanto o homem, um rol que poderia ter sido inaugurado por Caim e que contém tantos diversos nomes como Shylock, Gengis Khan, Hannibal Lecter e o goleiro Barbosa. Rousseau, ainda no incipiente Estado, pregou que os malfeitores do Estado deixam de ser cidadãos e, por isso, são considerados inimigos de Guerra. A trilha de pensamento, para legitimar a ordem Estatal teve vozes em Hobbes, Fitche e Kant e, muitas vezes, ocorre de forma velada, encoberta por ideologias cientificas.
Os exemplos são tão vastos quanto a quantidade de relações humanas da Terra. A legitimação nazista da supremacia ariana (e a conseqüente pecha de inimigos aos não-arianos) por uma leitura desregrada de Nietzsche e, quiçá, por um manifesto de Sião apócrifo; a leitura de Marx, nos pontos interessantes ao Socialismo e a refutação do mesmo Marx, nos pontos não interessantes ao Socialismo. Em todos os casos, a premissa é a mesma. O poder se funda em uma ideologia, nos pontos que a interessar; o próximo passo é a eleição dos inimigos, aqueles que são contrários ao sistema vigente, que devem ser destruídos física e moralmente.
Nos dias atuais, a tendência de eleição do inimigo certamente não se contenta em eleger inimigos do Estado, como os da época de Rousseau, ou inimigos do Socialismo, como os da época de Stalin. O conceito de inimigo, durante a História, é simples: estes apenas refletem os medos da classe social vigente, como em muitos contos de Borges o vilão antagonista apenas reflete o medo do temeroso e mesquinho protagonista (e invariavelmente para Deus os duplos são a mesma pessoa) como em Os Teólogos e A Morte e a Bússola.
O direito penal do Inimigo, mostrada por Jacobs, mostra a tendência de eleição do inimigo de nossos dias. Funda-se no terrorismo e em fatos como o 11 de Setembro e o 11 de Maio; sua solução, como o de todas as outras épocas, é a de minar o inimigo de suas prerrogativas de direito e puni-lo, pela simples existência. Ao cidadão, pune-se pelos seus atos. Aos inimigos, pune-se apenas por sua periculosidade – ou seja, pune-se apenas pelo fato de serem eleitos como inimigos.
Achei necessário refutar Jacobs, e já escrevi que o poder instrumentaliza as ideologias, utilizando o que lhe é necessário e descartando o resto e, exemplifiquei, mostrando que o Autoritarismo pegou de Hegel apenas o que lhe legitimasse e descartou a parte liberal, como os racistas apenas pegaram do evolucionismo ortodoxas premissas e não as devidas prudências doutrinadas por seus autores. Quanto à despersonalização do individuo e o legado de inimigo, como sanção imposta a priori, lembrei apenas o óbvio: a falta de legitimidade para a punição dos inimigos. Como exemplo, citei os terríveis e irreparáveis efeitos que esse pretenso Direito penal pode conceder a tantos ditadores contemporâneos, como os que se vê atualmente na nossa pobre América Latina.
O conceito de inimigo não é formado com a ideologia; é, ao contrário, um conceito a posteriori, que vem depois de formada a classe dirigente, que apenas pega o que lhe interessa das idéias. Ainda sobre a formação ideológica a classificação que quem não é daninho e quem é inimigo, já tive a oportunidade de escrever que “essa característica da manipulação ideológica tem um duplo efeito: a) gera em alguns a impressão superficial – e infantil – de que os criadores de cada ideologia foram ou são gênios do mal, que vivem buscando o modo de proporcionar argumentos de justificação do poder. Esse infantilismo analítico leva a afirmações absurdas de que Kant era um obsessivo, Hegel um delirante, Freud um traumatizado, a religião o ópio dos povos, etc; b) por outro lado, se originam intermináveis disputas acerca do que quis verdadeiramente dizer cada autor, corrente ou personagem, sobre a tese certa de que geralmente não disse o que o poder pretende por em seus lábios. Estas discussões são as que provocam inflamados manifestos demonstrativos que Nietzsche não disse o que Hitler entendeu, que Marx não disse o que Stalin o fez dizer etc.”
O conceito de inimigo vem após a eleição do que o poder dirigente pretende combater e após descartar toda ideologia que não a legitime no poder. Com isso, não quero justificar os atentados e os homens-bomba do islã; apenas quero refutar a tendência ideológica que os “inimigos” devem ser combatidos, apenas por existirem, mas sim pelos atos que praticarem. Isso por que, por algum acaso fosse o mundo dominado por Aiatolás fundamentalistas, não haveria homens-bomba (pelo menos, não os mandados pelos Aiatolás) e, certamente, os inimigos seriam outros, como por exemplo, os infiéis do ocidente.
Não justifico determinada ideologia ou detrato outra; não é minha intenção mostrar que o Ocidente é melhor ou que o futuro reside nos escritos do mandarim, como também não pretendo provar que eu estava certo e que o outro grupo da Sociedade se equivocou; as ideologias são tão flexíveis quanto à equidade e não passam de pontos de vista, muitas vezes deturpados, muitas vezes mal interpretados, propositalmente. Mas nesse ponto, uma conclusão se mostra inevitável: eu sou tão vil, tão torpe quanto os homens bomba que atacaram as torres gêmeas no fatídico 11 de setembro; sou tão baixo quanto todos os nazistas; tão ortodoxo, quanto os companheiros de Stalin. Isso por que a História e o Direito não são feitos por mim, mas sim pelos vencedores. Não é saber que determina o poder, mas justamente o contrário: é o poder que condiciona o saber. Mais, é o poder que determina a razão e a injustiça, o bom e o mal, a verdade e a mentira. A história foi contada e, na Sociedade, fui eleito o mal, muito embora essa sociedade seja apenas figurativa, seja todas as Sociedades.
Da mesma maneira que não justifiquei minha torpeza, mas, sim, apenas constatei um fato que existirá independente da época, independente do nome que lhe for dado, não queiram justificar – seja o perdedor que for – quaisquer derrotas com essas minhas linhas, uma vez que são apenas linhas, são apenas parte também de uma ideologia. Apenas aceitem que a história não é feita por nós e para nós, perdedores, e regozijem-se com a singularidade e a beleza inexata da pecha de inimigo e de perdedores que nos é dada. Todas as linhas escritas não foram assinadas pelo meu nome dado à pia, e pelo qual todos me conhecem, Eugênio Raul Zaffaroni; pelo contrário, foram escritas pela pessoa que teve na Iniciação um nascimento, que combateu e que perdeu, e que, por isso, foi considerado perigoso inimigo, um personagem denominado Johann.
[1] Alguns erros são propositais, outros não. Sei que cometo uma tautologia, já que pessoa virtuosa e membro da Sociedade são termos sinônimos. No entanto, já que os que lerão esse documento são, em sua maioria, profanos, justifico essa incoerência apenas para citar a credibilidade da minha fonte e o espanto que esta me causou – a existência de um secreto mundo que me foi confessado por um (ainda inominado) douto juiz de Direito, membro desta pretensiosa Sociedade.
[2] É preceito da Sociedade também, como conseqüência de uma nova, de uma purificada vida vindoura, a existência de um novo nome. Todos que adentram na Sociedade recebem um nome, que lhes lembra sempre a condição de serem superiores, de serem diferentes do mundo profano e, principalmente, de terem uma ligação a mais com os irmãos da Sociedade; pois apenas estes conhecem teu secreto nome; apenas estes são capazes de te chamar pelo seu nome verdadeiro.
[3] No ano de 1999, o então prefeito foi iniciado. No começo, sofreu as mesmas restrições que todos os iniciados são submetidos: um período de testes, para medir a confiança e a perspicácia do iniciado. Ocorre que o chefe do Executivo local não suportou não ser a voz preponderante do novo meio e pediu seu afastamento, um acontecimento tão vexatório para os membros quanto um suicídio. Desde então, ficou alcunhado jocosamente como “rei morto”.

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