quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

pós-escrito - chesed

A crônica literária afirma, peremptória, que a literatura é dividida e comandada por dois gigantes: Dante e Shakespeare. Não de outra maneira é a literatura nacional. Dividida entre os “Machadianos” e os “Rosianos”, para desespero de um terceiro grupo, um pouco menor, os “Clarissianos”. Confesso que pertenço ao segundo grupo e que sempre pendi mais para o jaguncismo do norte de Minas às histórias do Bruxo de Cosme Velho.

Guimarães Rosa se preocupou com uma “ética do Sertão”, que aparece de varias formas e com variadas matizes em sua obra. A tal ética se preocupa em demonstrar: 1. o maniqueísmo, a existência e a eterna luta do bem e do mal – mostrada da mesma maneira que o Autor enxerga o mundo: religioso, cristão, mas permeado de superstições e crendices; e 2. A busca pela redenção. Esta busca está presente em vários contos de Tutaméia, Sagarana e no Grande Sertão: Veredas.
Em relação ao Grande Sertão, é apenas a maior obra escrita por um brasileiro e classificada recentemente pela Folha de S. Paulo como o quarto maior romance escrito no século passado. Mas embora seja a maior e mais famosa obra de Rosa, a força propulsora de médico-diplomata-literato mineiro está nas narrativas curtas. Tanto que, mesmo o Grande Sertão, única obra extensa do autor, é na verdade um conjunto de diversas pequenas estórias. Guimarães Rosa é e sabe ser, acima de tudo, um contador de estórias. E no meio da trama de Riobaldo Tatarana e Reinaldo Diadorim, narra contos, mitologias, fábulas bovinas, paródias e aforismos da vida no Sertão. Aliás, diga-se de passagem, homem do Sertão e sertanejo são palavras com significados distintos.
Sagarana talvez seja a mais representativa obra de Rosa. Lá estão todas as suas preocupações, todas as suas características: o homem do sertão – que tem o sertão dentro de si – buscando entender-se a si próprio e o universo, o universo de tantos do Sertão. Lá estão os grandes contos: São Marcos e Corpo Fechado, que demonstram como a religiosidade convive com as crendices, magias e superstições. E estão tratados do homem do Sertão, como Sarapalha, A Volta do Marido Pródigo, Duelo e, principalmente, A Hora e Vez de Augusto Matraga. A Hora e Vez pode ser apresentada como um resumo de toda a obra de Rosa: lá estão os jagunços, o amor, as lendas, os bandos e toda a metafísica que estariam presentes anos mais tarde em Grande Sertão; lá estão a religiosidade, a paródia com a vida santa e pecadora, e as superstições presentes em São Marcos. Mais, lá está presente a tal ética maniqueísta de redenção, que existe na mente do pactário e pecador Riobaldo e que todos os contos de Rosa implicitamente ou explicitamente contem. A tríade punição-expiação-redenção. O Crime. O Castigo. Sobretudo, a Redenção. E A Hora e Vez capta como nenhum outro conto essas três fases: indubitavelmente, Augusto Matraga é nosso Raskolnikov; indubitavelmente trata de nosso Crime e Castigo. E tanto Dostoievski como Rosa sabem que a grandeza não está nem no crime nem castigo, mas sim na posterior redenção. “E pro céu eu vou, nem que seja a porrete”, é o hino que embala o conto, a vida de Nhô Augusto e de tudo mais que se possa denominar como Rosiano, mas é tão universal quanto o pequeno sertão de Minas na visão de Rosa.

Imaginei, portanto, não um conto, que apenas se assemelharia às temáticas já utilizadas por Rosa, e que acima descrevi. Imaginei sim uma carta explicativa de como funciona o maniqueísmo do Sertão. No entanto, apenas uma explicação – sem os neologismos e fraseações próprias de Rosa – seriam superficiais: Recorri, por isso, a um modelo híbrido: explicativo, por vezes e, na voz inventiva de Seo Manuelzão – que existiu, de se pegar – outras vezes. Situei-lhe após Sagarana, mas anterior ao Grande Sertão.

A maioria dos neologismos realmente são de Rosa. Foram selecionados em leituras do Grande Sertão e também dos Dicionários Rosianos próprios que hoje dispomos. Exemplos? Cá estão, alguns...

Abocabaque – corruptela da expressão Ab hoc et ab hac – Expressão em latim que quer dizer “A torto e a direito”.

Perequitava – Do latim – Per Equitare – Montado à cavalo. Provável sentido: Em situação determinante.

Rascravar – Conjunção das partículas Rasgar e Cravar.

A forma dos discursos e o jeito de narrar, principalmente, da fala de Seo Manuelzão, foram feitos assemelhados com o narrar de Rosa, em situações sinônimas.

Em tempo. O começo do conto remete à uma passagem em que Graciliano Ramos, em um concurso literário, preteriu Sagarana e concedeu o título À Maria Perigosa, de Luis Jardim. Tal passagem realmente existiu, e Graciliano Ramos a descreveu, como um “sururu artístico” anos mais tarde, em uma crônica curisosa e divertida chamada “Conversa de Bastidores”.

Em tempo (2) – As ilustrações presentes são de Poty Lazzarotto (Napoleon Potiguara Lazzarotto), artista curitibano que ilustrou Sagarana, Tutaméia e que tem um painel aqui em Maringá, na Teatro Calil Haddad.

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