sexta-feira, 21 de maio de 2010

Tiferet




Dias atrás fui solicitado para uma entrevista. Nas minhas atuais condições, normalmente dispenso educadamente o entrevistador e, se insistir, digo para reproduzir em seu jornal qualquer coisa de qualquer biografia minha. Mas confesso que o editor do jornal dessa vez foi inteligente. Quando a campainha tocou em minha casa, não imaginei o que se seguiria. “O Senhor pode me conceder cinco minutinhos para uma reportagem do nosso jornal?” disse-me, mostrando a credencial entre a mãozinha fina, deixando entrever um pouco dos dedos sem tintas e roídos. O instinto quase me fez dizer a máxima já dita, que sempre utilizo para afastar jornalistas. Mas um outro instinto foi mais forte e disse, “Sim, é claro”, ao ver a jornalista com cara de menina, óculos na cara, olhos redondos e vivos cor de caramelo, lábios grossos, camisa social branca séria, com dois botões desabotoados não tão sérios assim. “Quanto anos tem, filhinha” a inevitável pergunta. “Vinte anos, respondeu”. Sou estagiária do jornal. Implorei para tentar essa entrevista porque amo os livros do senhor. Sou sua maior fã. Até nervosa estou...” disse mostrando as mãozinhas suadas. “Sei” respondi, e dentro de mim reconhecendo a astucia do editor.
A entrevista se iniciou e seguiu com as mesmas perguntas que respondo há décadas. Em determinado momento, ela me perguntou: “O Senhor acompanha o cinema, acompanha filmes atuais, filmes de moda de Hollywood?” Respondi que sim e ela logo perguntou o que achava da série Crepúsculo. “Gosta de vampiros?” Perguntou-me, por fim, com a caneta entre os lábios grossos, que insistiam em um sorriso malicioso que talvez só fosse fruto de minha imaginação. “De vampiros, gosto sim. De viados, não. Por isso, não gosto de Crepúsculo. Ela indignou-se ou fingiu indignação. Perguntou-me o porquê. Respondi sincero que podiam filmar, brincar e insultar com qualquer coisa, mas que vampiro é coisa séria. Que vampiro, o verdadeiro vampiro, é um sujeito elegante, um bom vivant por natureza, que bebe sangue como que degusta um bom vinho. Que tem em sua natureza o charme, a tradição, a beleza de serem vampiros. Respondi que podiam fazer draminhas adolescentes com bruxos, com elfos, com o que quisessem. Mas que vampiros são uma coisa séria. Por fim, disse que havia conhecido um vampiro. Ela arregalou os olhinhos caramelizados atrás da lente dos óculos e indagou como uma criança: “Jura?” Jurei. E contei a história verdadeira, que me ocorreu algumas décadas pretéritas...
Fui convidado para uma festival literário no Brasil, exatamente na cidade de Curitiba. O tema fascinava e ainda fascina: “Cronologia e Marcos da literatura erótica e maldita no Brasil”. Por isso, decidi aceitar, e já no Brasil lembro de um dialogo com um dos idealizadores do Congresso, que dizia que, inicialmente, o evento seria realizado em São Paulo, mas por motivos de força maior, foi transferido para Curitiba. “Força maior?” Indaguei. Ele apenas me respondeu. “O senhor será uma das grandes atrações deste evento. Mas não é nossa estrela maior. Ela é o motivo de estarmos em Curitiba.” Não foi difícil descobrir a “estrela maior” e, conseqüentemente, o motivo de o
Congresso ser realizado em Curitiba, a bela capital do estado do Paraná. A estrela tinha nome, sobrenome e uma alcunha poderosa: Dalton Trevisan. Todos comentavam pelos corredores a proeza dos organizadores do Congresso: haviam conseguido uma palestra com o próprio Vampiro, que concedeu a honra mediante alguns requisitos, como ausência de filmagens, vinte minutos apenas de palestra, sem direito a perguntas ou indagações e, o principal, que o Congresso fosse realizado em sua cidade Natal, de preferência em local que ele pudesse ir a pé.
O Vampiro: O recluso escritor, de linhas eróticas e amaldiçoadas; a pessoa escondida atrás dos livros, atrás das lendas, atrás dos boatos de pessoas que afirmavam estar em seu cotidiano; a pessoa impublicável, intratável, irreconciliável. O escritor de letras, não de imagens, de palavras escritas e não palavras ditas, de histórias criadas por ele e não histórias protagonizadas por ele. O escritor par excellence, o escritor, em tempo integral, das pessoas, do cotidiano, das estações mal delineadas da Curitiba facetaria, escura, sombria, das noites sulfúreas e insones.
Confesso que, até então, em meu país, não havia escutado nada sobre o Vampiro de Curitiba e, por isso, ouvir suas lendas e saber que veria uma aparição pública sua me deixara extasiado.
Não posso deixar de confessar que sua aparição me foi um pouco decepcionante. Esperava um homem forte, sinistro e recluso. Pareceu-me um senhor de meia idade, encabulado com os aplausos, fortemente envergonhado. O Vampiro disse um pouco de sua obra, um pouco de suas preferências literárias; nada imortal, nada digno de recordação. Minha palestra também foi medíocre, e hoje mesmo me esforçando não consigo recordar sobre o que disse. Mais palestrantes. Mais monotonias. E a única coisa que me recordo da infausta noite foi seu término, as cadeiras já vazias, o cumprimento mentiroso dos organizadores e bajuladores de plantão, nós ao lado, na coxia, conversando amenidades. Foi quando o Vampiro disse. “Isso aqui é tudo balela. Por isso não gosto destas babaquices. Só fazem perder tempo. Consigo em uma noite mostrar mais literatura do que em mil palestras dessas.” Não me contive e perguntei como. Ele olhou para mim, para os outros dois conferencistas da noite e disse. “Querem mesmo saber. Terão que vir comigo. A pé, como convém”. Foi difícil fazer com que os organizadores dessem a permissão para a idéia. Eles se sentiam responsáveis e era muito provável que algo acontecesse conosco, perdidos na noite escura curitibana. Ladrões, estupradores, bêbados, como permitir que fossemos a essa aventura? Mas nossas súplicas – minhas, de João Ubaldo Ribeiro e Roberto Bolaño – foram suficientes, bem como o silêncio ensurdecedor do Vampiro. E assim, calado, ele saiu do Teatro Guaira, chamando-nos apenas com seu olhar.
Ao sair, seguindo o Vampiro, entendi a Curitiba, a Curitiba que só é enxergada a noite, com seus bêbados, com suas características peculiares, com suas maldições, com mocinhas de todas as formas passeando de um lado para o outro, oferecendo-se, seus corpos, suas pequenas vidas. Conheci Curitiba, o local perfeito para habitar o Vampiro. Andamos até a Avenida Marechal Floriano Peixoto e entramos em um prostíbulo barato, adornado de pequenos e velhos sofás e uma luz vermelha, que tremeluzia, ao som de boleros antigos e de canções de Caruso. Principalmente, adornava o local algumas mocinhas, que maliciosas teceram comentários afirmando que o tiozinho trouxera mais senhores distintos consigo. Inútil afirmar que com mais mimo fomos tratados, quando descobriram pela nossa fala que éramos estrangeiros, mimo doce de meninas novas, algumas fugidas de casa, outras fugidas da vida, meninas de espartilho, de saias curtas, de roupas de couro, com chicotes, com todos os tipos de adereços. O Anfitrião então se sentou em um dos sofás da casa, chamou com o olhar duas mocinhas que prontamente se aconchegaram aos seus braços e disse: “Isso é literatura. Aqui verão o que mil livros têm pudores de dizer” Sentamos ao seu lado e fomos acompanhados de muitas meninas, que sentaram conosco. Nossa curta estadia com o Vampiro se resume nesta cena: três escritores, calados, tomando vinho barato feitos em uma cidade próxima e encharcados da atmosfera criada pela luz vermelha, escutando histórias fantásticas de prostitutas, guiadas pela batuta do mestre de cerimônia... o Vampiro. As histórias escutadas naquela noite são as histórias que as prostitutas têm a contar em todos os locais, pelos séculos, com limitadas variações. A história do amor entre a prostituta e o cliente. A rejeição deste amor. A história do rapaz virgem, que conhece os mistérios do amor com uma prostituta. A história da prostituta que engravida, da que nunca saberá o rosto do genitor da criança, ou da que sabe, da que casa com seu cliente, mas não abandona o ofício, o dom que lhe foi destinado. A eterna história que se compra o corpo, não a alma. Que se compra um cu, mas não um coração. Que se pode bater, falar palavrões, mas não se pode beijar – porque o beijo é intimo demais pra ser comprado. Embriagados todos de vinho, nós quatro rimos e choramos das comédias a tragédias que nos foram ditas e que tantas vezes foram vividas, em tantos locais, em tantos tempos... E, já bêbados, fomos mais uma vez inquiridos pelo Vampiro, dono da noite, dono da situação. “Isso é literatura. A literatura que não pode ser contada, que não pode ser escrita, por que os leitores, por que os editores, são pudicos, tem vergonhas, famílias, por que as mulheres não podem aceitar que seus maridos mintam que vão trabalhar e venham para esse sagrado local em busca de sexo e prazer. O mundo não pode escutar nossas verdadeiras palavras, a verdadeira literatura, porque eles não querem escutar, porque nada disso é conveniente a eles. A verdadeira literatura se resume a isso: um pau, uma vagina, a penetração, o cortejo, a busca do melhor macho, a eleição da fêmea com as melhores características. Todo o resto é penacho de enfeite. O verdadeiro, o único protagonista da literatura, sem rodeios, é um pau, doido para foder. E, ao contrario de vocês, eu faço essa literatura. Eu consigo dizer minhas palavras, e consigo achar leitores, que não tem vergonhas, que não tem modos pudicos.”
Assim o Vampiro nos iniciou em assuntos particulares seus. Escrevia ele roteiros de filmes pornôs, que, por sorte, eram filmados em uma pequena produtora de filmes B do estado. A principio, mesmo embriagado, duvidei da veracidade: correr o risco de escrever roteiros pornôs, que não se sabia se seriam filmados ou não, em troca de um dinheiro irrisório, para um publico quase inexistente...
Mas o Vampiro continuou: “O dinheiro não importa. Recebo-o porquê faz parte da regra do jogo. Vendo meu produto, eles compram. Se filmarão, dependerá dos recursos deles, da disponibilidade de atores, de atrizes, de câmeras... o que importa é que fiz minha parte. Escrevi um pouco da história do mundo. A história sem rodeios. A história de todos nós, a história que querem seja proibida. A história do pecado original, contada, recontada, a exaustão, com todas as variantes possíveis. Se alguém assistir, mesmo que não perceba a história, mesmo que só se interesse pelo sexo, já terei minha missão cumprida, porque a história foi passada adiante; porque, enfim, a literatura venceu e não foi censurada por todos os censores da Terra.
Embriagados, juramos fidelidade ao Vampiro. Embriagados, sob o olhar penetrante das putas, pactuamos que reescreveríamos um pouco da História da Humanidade de maneira original, sem cortes, sem amenidades, sem nada. Assim criamos a Sociedade dos Vampiros Literatos, que tinha como fundador e presidente o Vampiro em pessoa. Com o tempo, com a sobriedade, a idéia criou força e com ela vieram estatutos, códigos pessoais e normas de conduta.
Os principais regramentos eram: anonimato absoluto; em nenhuma hipótese, poderíamos citar em nossos livros qualquer coisa relacionada com os roteiros que criávamos. E também, nos filmes, não poderíamos citar nada que pudesse relembrar nossas obras; os roteiros deveriam reproduzir fatos importantes ou preocupações literárias nossas, sem pudores, envolvendo grandiosas cenas de sexo.
Assim criamos nomes, graus de hierarquia, nossa própria Sociedade Secreta. Criamos cadeiras, a molde de academias literárias, em que éramos os fundadores e que devíamos passar o legado. Cada cadeira tinha seu patrono: a minha, numero três, tinha como patrono Nabokov. A do Vampiro, Cadeira um, patrono Decameron. Cadeira dois, João Ubaldo Ribeiro, patrono Alvarez de Azevedo. Cadeira Quatro, Bolaño, patrono Sade.
E distantes, cada qual em seu país, cada qual com sua preocupação, fazíamos reuniões e conferências por cartas, por telegramas e, principalmente, regozijávamos com os roteiros feitos pelos outros. E pouco a pouco, criamos outra forma de escrever, outras preferências, outra identidade literária, conhecida somente por nós quatro e pelo discreto dono da Produtora de filmes, que nos pagava com poucos cruzeiros, e que era mais aceito pela honra do que pela necessidade. Aos poucos, fomos conhecendo nossas preferências, nossas formas de retratar coisas que desconhecíamos, que tínhamos somente em nosso interior e que não ousávamos sequer imaginar... Ubaldo Ribeiro, o outro brasileiro, deixou-se seduzir pelos filmes, pelos livros já criados, e que, segundo o Vampiro, não foram criados de forma plena porque passaram pela censura do sexo. Assim criou roteiros utilizando filmes, livros, com seus personagens conhecidos, com suas histórias já famosas, reescritas sem cortes, reescritas com a incursão do personagem principal, o membro fálico masculino, que tudo faz em busca do coito. Reescreveu A Doce Vida, O Poderoso Chefão, 2001, Doutor Jivago e Cidadão Kane, com uma mistura de Sade e Freud, sempre com grandiosos espaços para as cenas de sexo.
Bolaño preferiu fatos conhecidos, notórios, escritos pela própria História, e agora reescritos à maneira nossa, os Vampiros. Um dos seus melhores roteiros foi a história do pecado original, do Adão e Eva a Serpente e o Paraíso. O produtor fez uma pequena intercessão, proibindo a inclusão de Deus como personagem, pois assim perderia boa parte dos seus poucos expectadores. Consentiu em fazer da serpente um personagem real, que era um anãozinho brasileiro, negro e coxo, mas excelente em tomadas de sexo, sua própria visão do capeta – e desse fato dei boas risadas e pude concluir pelo espírito literário do nosso amigo produtor. Reescreveu a Odisséia, com um Ulisses corno retornando para casa e vendo sua Penélope fodendo com toda população grega e a ainda a Revolução Francesa, tendo como motivo a busca dos franceses pelo fim da recriminação sexual do país (liberté) e a maior quantidade de cópula no cotidiano dos franceses (fraternité).
Eu procurei as crônicas, as fábulas (sem animais), os aforismos e o simbolismo das alegorias. Ao contrário dos outros, não reescrevi histórias conhecidas, mas sim escrevi cenas de sexo em que criei significados simbólicos, quase sempre invisíveis. Sinto-me frustrado porque as duas cenas mais geniais que criei nunca foram filmadas. A primeira é a de um coito em Machu Picchu. Ela, índia, de quatro, nua, gritando, em quéchua, e por isso não se sabe se gritando de dor ou prazer; ele, espanhol, vestido com as armas reais e armado até os dentes, urrando palavras de ordem, batendo-a, fornicando como animais, somente os dois na vista linda das alturas de Machu Picchu. E gozando, ao mesmo tempo que grita, tira seu pau e olha solenemente para a cidade perdida inca, enquanto sua parceira não fala, não desaprova e nem se mexe. O primeiro significado é facilmente compreensível. O domínio espanhol, as privações dos americanos, a profanação de um local sagrado, o fato intertemporal de que uns nasceram pra foder e outros nasceram pra ser fodidos. O segundo significado talvez foi somente compreendido por mim e é extensão do primeiro significado. O espanhol, armado, vestido, somente com sua arma de fora, goza e a tira de dentro de sua parceira. Grita um grito que ecoa em Machu Picchu e, em poucos segundos, sua piroca enorme que ainda goteja vai se apequenando e acabrunhando pra baixo. Enquanto isso, silenciosa, de quatro, permanece a fêmea, da mesma maneira que permanece a cidade sagrada, com suas ruínas, com seus diques, com suas construções sagradas que nenhum europeu poderá se apoderar. Somente eu e os outros três Vampiros entendemos que, mesmo cruel e sanguinolento, o Império sempre se desfaz, se acabrunha, enquanto silenciosa permanece a vitória, como um monte de terra, como um pedaço de seio, um corpo feminino, instituições sagradas, que se pode ocupar, mas não se pode obter. A cena nunca foi filmada por motivos óbvios: a locação da cena nunca seria cedida para estes fins; nunca conseguiríamos o parque nacional de Machu Picchu, nas alturas do Peru, para ser filmado um tosco filme pornô.
A segunda idéia é a de um jovem de qualquer país miserável da América, que vá para a Europa em busca de uma melhor vida. E em sua nova vida, é contratado e, no ambiente de trabalho, seduz a chefe, uma italiana – ou sueca, ou alemã, ou inglesa – loira e linda. Levado para sua casa, que é ampla e suntuosa, ela se mostra, não como no trabalho, local que tem a função de comandar, mas seu eu verdadeiro, submisso, querendo que ele a controle, que fique por cima, que mande e obrigue-a na cama. E, então, o inesperado acontece: ele brocha. E, diante da cena, ela de quatro, sussurrando uma musica francesa conhecida, pedindo para ser possuída, ele fica possuído de ódio porque está impotente e começa a bater nela e inicia a quebrar todos os móveis da casa. A cena representa o anseio impossível do colonizado dominar o colonizador e, mais: mostra o maior medo do macho latino americano: pode-se retirar sua liberdade, sua história, seus antepassados, sua cultura. Mas que não retire sua potencia, que é seu maior atestado de existência, seu membro rígido, firme, doido pra sair da calça. Também não filmaram este roteiro por motivos óbvios: um filme pornô em que o ator principal brocha seria inevitavelmente um verdadeiro fracasso.
Já o Vampiro, o original, justamente por sua alcunha, transitava em todos os gêneros descritos; conseguia, pela experiência, pela forma de vida, dizer destas coisas, comuns, banais, porém com significados enormes, de maneira que nunca conseguiríamos. Seus roteiros são verdadeiras obras de arte e os filmes que se originaram dos roteiros são em média bons, embora ninguém prestasse atenção na história, a não ser nas depravadas cenas de sexo.
Essa foi a história que contei para a pequena jornalista, a história que se findou com a morte de Bolaño e que, desde então, deixou os Vampiros Literatos mudos e com uma cadeira em busca de seu sucessor. Contei-a com detalhes, com toda sordidez, com todas as nuances dos filmes, das cenas, do sexo em si. A mocinha recostava na cadeira, voltava a posição original, encabulava-se quando a conversa apertava, e muitas vezes passou um lencinho com sua mãozinha pequena e seus dedos roídos pela face, ruborizada e suada. Percebeu quando eu olhei para seus seios, que queriam escapar da blusinha branca, aberta de propósito, certamente uma instrução de seu chefe. Na primeira vez que percebeu, cobriu discretamente com a face de sua mãozinha, que mal podia esconder o pedaço redondo de seio que teimava em aparecer; e não tão discreta ficou vermelha, inteira, enquanto eu a examinava e falava safadices, coisas de um velho tarado. Aos poucos, parou de se cobrir e me pareceu que, enquanto eu falava, enquanto eu descrevia todas as imagens de sexo previstas no Kama Sutra, ela relaxou, deixou de se cobrir, aos poucos mesmo foi deixando se ver, quase abrindo o terceiro botão de sua linda e delicada blusinha branca.
Conclui a entrevista, ela me olhou com o mesmo sorriso provocante do inicio da entrevista, a caneta entre os lábios grossos, o olhar vivo caramelo atrás do fetiche que eram aqueles óculos. “Isso é tudo, filhinha. Pode contar no seu jornal o que bem entender. Só não sei se seus leitores terão estomago pra tudo isso”. Ela me respondeu que não contaria, que ninguém daria créditos a sua reportagem e que muito provavelmente seria despedida por justa causa. Eu assenti que sim e conclui com as mesmas palavras que um dia escutei do Vampiro: “Esta é uma história verdadeira. Mas não deixa de ser história. A verdadeira literatura é outra, que não posso contar nem falando por sete dias, mas que, em uma hora, nós três nessa sala podemos descobrir”.
Mais uma vez ela se assustou. “Como assim, nós três? Só estamos aqui eu e você, Gabriel Garcia Marques, nessa sala.”
Puxei ela junto a meu corpo e rapidamente tirei do meu bolso a resposta. “Eu. Você. E essa maravilha chamada Viagra”.




Pós-escrito.

Se há algum fato que possa juntar a colcha de retalhos de identidades da América Latina, é justamente o sexo e a importância do ato sexual na mente do tal “macho latino-americano”.
Velado ou não, o sexo e o erotismo estão presentes na literatura de nosso continente, sempre de maneira provocante. Os quatro da história são exemplos do que digo: Bolano criou o excelente Putas Assassinas e, no mesmo livro, há o magistral conto “Prefiguração de Lalo Cura” em que o protagonista é filho de uma prostituta atriz de filmes pornográficos.
O brasileiro João Ubaldo Ribeiro escreveu o livro da Luxúria da coleção Plenos Pecados, “A Casa dos Budas Ditosos”, que foi considerado pornográfico e proibido em Portugal.
E Dalton Trevisan, o grande Vampiro de Curitiba, por sua vez, é talvez o maior mestre da literatura erótica em nosso país e ainda cultiva as mesmas características de solidão e vida reclusa.
O colombiano Gabo, na maioria de seus livros, escreve sobre a representação desse macho latino americano que se importa acima de tudo com seu desempenho sexual. Cem Anos de Solidão, Amor nos tempos do Cólera e Memória de minhas Putas tristes são ótimos exemplos, que não me deixam mentir, todos com imagens claras e clássicas do sexo, sem nenhum pudor.

Colonizados, latinos, amantes: se somos tão diferentes em nosso vasto continente, na literatura, nos costumes, no futebol, deixemo-nos ser guiados pelas nossas semelhanças, que ao menos na literatura são verdadeiras e que, principalmente, são muito belas.


No fundo era tudo sexo. A arte era só uma tentativa para mudar de assunto. Toda literatura épica era a exaltação velada do pênis erecto. Depois do herói fálico vinha a impotência e a literatura da impotência. Toda a arte discursiva era sobre as aventuras do nosso personagem preferido, o Ricardão. De pé e invencível, encurvado pela dúvida e o autoconhecimento (toda a literatura depois do século XIX) ou prostrado pelo mundo moderno, com a cabecinha cheia de idéias confusas em vez de sangue e ímpeto. O sucesso da literatura escapista de super-heróis e bandidos lúbricos era que ela restabelecia o ideal da erecção eterna. Eu tratava, pois, do único grande assunto do homem, sem as metáforas e a dissimulação. O drama da ejaculação precoce. A tragédia da contrição vaginal. A comédia do orgasmo simulado. E até as grandes questões filosóficas. Não se haverá vida depois da morte mas: será que se consegue mulher?
Luis Fernando Veríssimo. A Terra Arida. Sexo na Cabeça

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